16 de dezembro de 2016 SíRIA

Carta de Alepo número 28 (12 de dezembro)

Quando escrevo essa carta, a maioria dos quarteirões da cidade de Alepo ocupados pelos rebeldes foi liberada, as estradas foram limpas de tudo que impedia a comunicação entre uma e outra parte da cidade. Muitos rebeldes armados aproveitaram a anistia concedida e se renderam, mas, apesar de todos os apelos mundiais e locais para a evacuação de Alepo, um núcleo de terroristas, especialmente a Frente Al-Nusra, se recusa a entregar as armas. Eles continuam bombardeando os bairros ocidentais da cidade.

Agora estamos assistindo a um novo êxodo: milhares de famílias saem dos quarteirões orientais e vêm se refugiar nas áreas mais seguras.

Muitas vozes anunciam que até o Natal toda a cidade de Alepo será reunificada. Nós esperamos que isso signifique o fim das hostilidades, do pesadelo, do medo e, especialmente, a implementação da paz, tão esperada, em Alepo, por quase cinco anos.

Ainda será necessário fazer muita coisa para os habitantes dessa cidade: como ajudar as pessoas a se levantar, a se instalarem, a terem confiança nos outros, a aceitarem a reconciliação? Que palavras dizer aos parentes dos mártires, aos feridos, àqueles que viram suas casas destruídas? Como olhar para um suspeito de ser nosso inimigo? Temos que ter confiança em um futuro pacífico? Que garantias oferecer aos deslocados e refugiados que deixaram tudo e foram viver no estrangeiro e ali começaram uma nova vida? Que respostas dar aos desconfiados, aos céticos, àqueles que anunciam outras desgraças?

Estamos preparados a começar um caminho novo? Se a paz se instaura entre nós, como conscientizar as pessoas de suas responsabilidades, de seus deveres cívicos e sociais?

Todas essas perguntas e muitas outras inquietam o nosso espírito. Pode ser que seja muito cedo para dar respostas, mas precisamos partilhá-las e começar a refletir sobre elas.

Nesses dias, os moradores da parte ocidental de Alepo estão saindo nas ruas e indo aonde antes era perigoso e proibido. Muitos descobrem o que aconteceu com seus comércios, casas e lugares de culto. A guerra passou por lá deixando seu rastro: tudo foi destruído, às vezes desfigurado ou até mesmo desapareceu. Tiram fotos, ficam indignados, choram… Tentam ver se podem recuperar alguma coisa: uma recordação, um livro, alguma coisa que os senhores da guerra deixaram ali e não levaram consigo.

O povo imaginava a grandeza da destruição, mas a realidade supera a imaginação e mostra a atrocidade dos crimes realizados.

Ainda há tragédias acontecendo: um grupo de crianças foi brincar em um jardim público e uma mina explodiu, matando-as. Precisa evitar os locais onde houve combates.

A parte ocidental ainda continua sendo atingida por morteiros e mísseis. Ainda há pessoas que morrem. O medo não para de crescer. Há três semanas atrás, uma escola foi atingida por um míssil. Ao menos 8 alunos morreram e mais de 100 pessoas foram internadas. Tudo isso diante de um silêncio vergonhoso dos líderes mundiais e de pequenas alusões nos meios de comunicação.

Há alguns dias, o Dr. Nabil nos convidava a sermos vigilantes: “a desinformação continua. Entre outras coisas, certos meios dizem que ‘Alepo caiu’ invés de dizer ‘foi liberada’”. Para quem escuta os que vêm do lado oriental da cidade, que estão ao lado deles, a realidade da libertação não basta para considerar terminado o pesadelo que viviam. Foram tomados como reféns por homens armados; não podiam sair, ir embora. Quando o exército do governo chegou, se sentiram seguros. Queriam sair daquele lugar o mais rápido possível. O que fazer para que os meios de comunicação transmitam a realidade como é?

 

No contexto da “saída mensal”, a equipe de animação dos Maristas Azuis, no dia 30 de outubro, encontrou 4 famílias entre as mais pobres dos nossos beneficiados. Esse encontro foi seguido por um momento de partilha e oração. Sublinhamos a importância do escutar e do respeito para com todas as pessoas para nos dirigirmos cada vez mais às famílias mais desfavorecidas.

No dia 12 de novembro, no programa “Ajrass el Machrek” (os sinos do oriente), da rede de televisão Al Mayadin, o Dr. Nabil apresentou o tema “a profundidade e sentido da ação de solidariedade em tempo de guerra”.

O governo de Navarra (Espanha) nos deu o “XIV Prêmio Internacional de Solidariedade 2016”. A ONG marista SED apresentou a nossa candidatura. Em uma conferência de imprensa, no dia 30 de outubro passado, Miguel Induráin, membro do júri, apresentou dessa forma as razões que levaram a essa escolha: “em reconhecimento do trabalho em prol da paz dos Maristas Azuis em uma das áreas mais atingidas pela guerra na Síria, a cidade de Alepo, e pela defesa dos direitos primordiais da pessoa humana, o direito à vida e por sua colaboração com outras organizações”.

O Ir. Georges, nessa ocasião, encontrou alunos de três centros educativos. Encontrou também adultos interessados pela situação na Síria. Explicou a eles a realidade da vida quotidiana na cidade, apresentando todos os programas de ação dos Maristas Azuis. Os que ouviram, (sem vírgula) expressaram solidariedade com o povo sírio.

Uma pergunta se repetia frequentemente: “onde encontram forças para continuar sua missão?”. Como podem imaginar, a nossa força tem raízes na nossa fé, nossa fé em Jesus Cristo, próximo dos pobres e condenados. Jesus que nos convida a encontrar o outro, principalmente os mais aflitos, os mais feridos e machucados.

Um grupo de crianças encontra o Ir. Georges e faz muitas perguntas. Ele, no final, dá um pequeno presente… Um gesto inesquecível… Um gesto de solidariedade… Um gesto que vai além de qualquer fronteira.

O presidente do governo de Navarra e o diretor do banco Kutxua encorajaram os Maristas Azuis a continuar seu trabalho. O Ir. Georges, em suas palavras de agradecimento, disse que o prêmio enche de honra os Maristas Azuis, mas nós o dedicamos igualmente a todas as vítimas da guerra… O prêmio chega quando a cidade de Alepo continua sofrendo. Esta solidariedade internacional nos estimula a resistir e continuar nossa missão. Nossa gratidão é uma promessa: “ficar, perseverar, estar próximos das pessoas que sofrem”.

Visitando a Alemanha, o Ir. Georges teve ocasião de encontrar amigos que escutaram ao vivo um testemunho da situação em Alepo. Os ouvintes descobriram uma realidade diferente daquela apresentada pelos meios de comunicação ocidentais e apreciaram nossa ação solidária para com mais de mil famílias.

Nós temos o apoio de uma grande rede de amigos que nos sustentam e rezam por nós. Aproveito a ocasião para agradecer a todos e dizer o quanto apreciamos seu apoio e oração.

No final de novembro, oferecemos a cada pessoa das famílias que acudimos (são milhares) um par de calçado e roupas novas.

Nesses dias, a situação caótica dos bombardeamentos nos obrigou a parar momentaneamente dois projetos: “Aprender a crescer” e “Eu quero aprender”.

Em novembro, um míssil caiu perto do nosso centro de distribuição do programa “gota de leite”. Os vidros do local se quebraram. Graças a Deus, nada além de prejuízos materiais.

A equipe que distribui água não para. Em pleno inverno, mesmo com a liberação da estação de bombeamento de água, localizada na zona reconquistada pelo exército sírio, a água e a eletricidade continuam sendo cortadas.

O programa de formação de 100 horas “como elaborar um pequeno projeto”, do qual participaram 20 pessoas, terminou. Os participantes redigiram seus projetos e um júri especial analisará os melhores e escolherá dois que serão financiados pelos Maristas Azuis.

Um novo programa de desenvolvimento entra no elenco de nossas ações. Trata-se de um programa de corte e costura, destinado às mulheres. Criado no mês passado, participam dele 24 mulheres. Durante 4 meses, seguiram, durante ao menos 6 horas por semana, uma formação sobre corte e costura.

Todos os outros programas continuam normalmente suas atividades (distribuição da cesta alimentar, distribuição de cobertas, distribuição de caixas d’água, ajuda ao aluguel, civis feridos da guerra e programas de alfabetização).

Em nome de todos os Maristas Azuis e de todos os que se beneficiam do nosso apoio, os convido a colocarem-se em caminho em direção ao Natal.

Nós, um povo em busca, um povo que espera, um povo de esperança…
Em caminho verso o Natal, nós avançamos…
Guiados por uma estrela, uma estrela de paz e solidariedade…
Em caminho verso o Natal, nós avançamos..
Um único desejo guia nossos passos: encontrar uma criança, encontrar o sorriso de uma criança, encontrar o humano de uma criança…
Em caminho verso o Natal, nós avançamos…
Mãos estendidas verso o outro, o todo outro, o estrangeiro, o deslocado, o mal-amado…
Em caminho verso o Natal, nós avançamos…
E nós cantamos: “paz aos homens de boa vontade”

Feliz Natal e Próspero Ano-Novo.

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12 de dezembro de 2016
Ir. Georges Sabe, pelos Maristas Azuis

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