Felizes os que creram sem ter visto
Nesta tarde, depois de Jantar, peguei o carro para ir a Valfleury, um povoado distante 20 km de l’Hermitage, do outro lado do vale do Gier, em direção oposta a La Valla. Ali, num lugar idílico, vive e trabalha Jean-François Telley, o carpinteiro ebanista que nestes dias está restaurando a Mesa de La Valla, que retirou de l’Hermitage no dia de Pentecostes.
Dirijo com prazer, na quietude do entardecer e hipnotizado pela paisagem. De repente, me dou conta que estou meditando sobre o risco de converter La Valla, e sua mesa, num santuário idolátrico de Champagnat, substituindo Jesus de Nazaré. É assim mesmo? pergunto-me em voz alta. É um risco… Mas, não! La Valla é um lugar ecumênico que ensina, guia, edifica e santifica. Ali estava Jesus Cristo, pedra angular da pequena comunidade nascida em 1817… Ali espera os apóstolos de hoje, que vivem o mesmo mistério de amor. Uma Igreja, marista, nascida para evangelizar, enquanto o espírito comunicava e comunica hoje a multiplicidade de seus dons aos pequenos apóstolos que se reuniam e se reunirão naquela casa… ao redor da Mesa.
Jean-François chamou-me, faz alguns dias: “Joan, restaurei uns 90% da mesa. É preciso que você venha para me dar sua opinião”. De acordo! Irei na próxima quarta-feira, respondi. “Chegarei tarde. Dou aula de escultura em Saint Etienne. Em torno de nove horas e meia”. Espero-o no jardim de sua casa, provando un verre com sua esposa, Anne-Marie, com quem tenho boa amizade. Foi ela que desenhou e pintou os quadros murais dos oratórios de l’Hermitage, no ano passado.
A Mesa nos aguarda na oficina de trabalho.
A espera torna-se agradável com o fundo musical de Bach. Jesus bleibet, a Cantata 147, que maravilha!… A voz humana misturada com o piar das cotovias, que originalidade! Falamos de pintura, de seu modo de expressão artística. Anne-Marie, que também leciona, emprega um linguajar com notório acento simbólico. Como eu, em algumas de minhas obras de arquitetura. De repente, senta-se conosco o amigo Lluís Duch, monge beneditino do Santuário de Montserrat (coração espiritual da Catalunha): O símbolo é um meio para projetar-nos além da evidência. Não se impõe. Sendo equívoco, é aberto! Permite que cada qual o interprete, o traduza, o atualize agora e aqui, segundo sua situação e seu momento vital.
Lluís, formidável amigo! Tua erudição me acompanha, faz muito tempo, e hoje retornaste com força, na velada de Valfleury, em momento muito oportuno. Que libertação! La Valla, a partir deste ponto de vista, será uma experiência revitalizadora para todos. Não será, em absoluto, algo fechado, pietista, dogmático.
A Mesa, a nossa mesa. O objeto icônico que por suas aparências torna presente ‘ao’ que está ausente.
Por isso, recomendei a Jean-François que sua restauração deveria respeitar todas, absolutamente, todas as feridas e mutilações da história.
Em absoluto promover-lhe uma reconstituição. Vendo a mesa, devemos “ver” os primeiros Irmãos e encontrar-nos com o milagre de Amor que aconteceu entre aquelas paredes. Reproduzir esse cenário para que o então acontecido se atualize, hoje, em nosso interior. Sugestão? Não, simplesmente ativar toda nossa capacidade de compreensão simbólica para além da pura razão.
Estou ansioso para ver seu trabalho. Jean-François vive sua plena maturidade vital e criativa. No ano passado recebeu o prêmio de Melhor Escultor, ou artista, da França, em sua especialidade, o trabalho em madeira. Foi um presente que a Providência colocou em nosso caminho. Seus trabalhos são excepcionais.
Desde o início de 2009, estabeleceu-se entre nós uma conexão de empatia que permitiu compreender-nos na linguagem comum da sensibilidade e em sua expressão artística. Ele restaurou, até hoje, toda a mobília antiga de l’Hermitage: a “Chambre Champagnat” (cama, cadeira de braços, reclinatório); o gabinete de trabalho (sua Mesa de trabalho, a Cadeira confessional); o Altar do século XVIII; o primeiro Altar da “Chapelle du Bois” (incluindo um antigo arcaz do século XVIII). Agora está com a Mesa de La Valla. O grande móvel o espera – “Le trésor de l’Hermitage” – um móvel com grandes gavetões na parte inferior e uma vitrina superior, de exposição; é um móvel que Champagnat recebeu em vida, no ano de 1838. E o Confessionário… e…
O ruído do motor de um veículo nos adverte de sua chegada. “Bonsoir!” Saudamo-nos com carinho, enquanto trocamos um olhar pleno de cumplicidade. Sem mais palavras e com a emoção contida nos dirigimos a sua sala de trabalho. Não me deixa entrar. Deseja preparar o cenário! Vejo-o agarrar duas lâmpadas porque a noite caiu e a obscuridade é completa. “Vas-y” (entre!) me diz, abrindo a porta de vidro. Ali, no centro, está minha velha e querida mesa. Sinto um ligeiro tremor que dissimulo, pois, imagino que me observa discretamente. Almas criadoras, conhecemos muito bem esse momento excepcional e único: o instante em que você abre seu coração, seu trabalho, sua arte, ao olhar perscrutador de um colega ou do público em geral, enquanto, no peito, sente pulsar forte o coração, e o sangue gela nas veias. Esse instante em que qualquer contração, qualquer sinal é captado, amplificado e convertido em motivo íntimo da mais dolorosa frustração, ou de entusiasmo transbordante.
“Elle me plaît! Superbe!”, (Gostei! Magnífico!) digo-lhe com sinceridade, enquanto rompo o silêncio e esboço um sorriso. “Merci, Joan!” responde ele. Com certeza, o trabalho está excelente. Aparentemente, parece não ter feito nada. No entanto, rompendo o silêncio, começa sua explicação, profissional e detalhada.
Jean-François, cidadão francês de ascendência suíça, fala e se expressa muito bem. Explica e mostra como integrou e ocultou, nas entranhas da mesa, uma estrutura de aço maciço, “pour les siècles des siècles” – me diz ele. Amém! – respondo eu.
Toda madeira carcomida foi substituída por madeira de carvalho, revestida por finas lâminas de madeira velha, recuperada dos antigos pranchões – que conservei, por sorte – do assoalho do quarto do Padre Champagnat, em l’Hermitage.
As gavetas, todas elas, estão reparadas. E substituiu aquela que fora roubada, faz uns anos. Irreconhecível. Ah! E todas as feridas, cortes, entalhes e furos, tudo isso respeitado. “Jean-François, parabéns; de você não esperava menos!” – “Obrigado, pela confiança de todos vocês”, respondeu.
Depois da visita, brindamos na intimidade. Um gole apenas, pois devo dirigir. Despeço-me com as badaladas da meia-noite. Caramba! Em l’Hermitage, todos devem dormir, faz um bom tempo. Uma grande lua, avermelhada e misteriosa, se levanta no horizonte de La Valla, do outro lado do vale escondido na obscuridade.
Penso novamente na força do símbolo, enquanto dirijo. Em La Valla, haverá quem vai ver velhas madeiras, pedras deterioradas ou, até, um exercício arriscado de arquitetura moderna. Outros, no entanto, poderão ler abertamente, nos símbolos, uma mensagem a convidá-los a olhar mais além e perceber corretas as sábias palavras de João: “Felizes os que creram sem ter visto” (Jo, 20,29).
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Joan Puig-Pey, arquiteto