Carta a Marcelino

Ir. Claude Marie

1840-03-25

Carta escrita do porto de Gorée, no Senegal, onde a corveta Aube, que transportava os missionários para a Oceânia, fez uma escala técnica de dez dias. Neste texto o Ir. Claude-Marie descreve as emoções que sentiu na partida, o mal-estar dos primeiros dias de navegação, os lugares de passagem, as datas e o tempo da viagem. Ele pensava deixar a França no mês de janeiro (Carta nº 199); mas, pelas informações desta carta, sabemos que só puderam zarpar em fevereiro. Foi viagem mais rápida daquela dos primeiros missionários, que empregaram um ano para chegar ao destino. Este novo grupo empregou apenas seis meses; o Ir. Claude-Marie desembarcou em Hokianga, sua destinação missionária, em 11 de julho de 1840.

Gorée (Senegal), 25 de março de 1840.

Meu muito reverendo pai:

Não poderia deixar passar a ocasião que se apresenta, nos oito dias de permanência em Gorée, sem escrever-vos acerca da nossa viagem e das várias outras circunstâncias, algo de que tomareis conhecimento com prazer, não tenho dúvida.

Tive a honra de escrever-vos de Brest, no dia 25 de janeiro, quando acreditava que partiríamos em poucos dias, mas os ventos contrários nos retiveram até dezenove de fevereiro. Aborrecemo-nos muito nessa cidade. Não conhecendo ninguém, não sabíamos aonde ir; permanecer no albergue era muito caro; assim, decidimos subir a bordo, onde devíamos ser alimentados de graça. No dia vinte e nove, dia de São Francisco de Sales, que tomara como patrono do mês, às três horas e meia, fomos jantar pela primeira vez no navio, que devia transportar-nos à terra por nós desejada há tanto tempo. O enjôo começou logo, mas foi pouca coisa. Desde esse momento até a partida, tivemos a felicidade de ir, de quando em vez, à santa missa e comungar.

O vento, enfim, tornou-se favorável e em dezenove de fevereiro, pelas oito horas, aparelhou-se a nave e partimos. Com o prezado coirmão e os padres, reunimo-nos todos juntos no seu camarote, para pedir ao Senhor, pela intercessão da melhor das mães, uma boa e feliz viagem; rogamos pela França, nossa bela pátria, pelas pessoas que deixamos e que nos são caras, enfim pelo pessoal do navio. Depois disso, subimos ao convés e, em seguida, à popa para ver uma vez mais a bela terra da França; mas qual não foi a nossa surpresa quando, no lugar da bela terra querida, não percebemos senão alguns rochedos, o céu e a água. A tristeza despontou então; malgrado nosso, deixamos correr algumas lágrimas e renovamos o nosso sacrifício a Deus.

Desde o primeiro dia, o enjôo começou a fazer-se sentir. No dia seguinte, levantamo-nos por algum tempo, mas muito fracos e muito mal; no outro dia, não me levantei. Os padres e o meu coirmão se levantaram por alguns momentos, mas trêmulos, comendo pouco e vomitando muito. No outro dia, encontrei-me melhor, levantei-me às sete horas da manhã e pude levar algum alívio aos outros, que só começaram a melhorar no dia 28; quanto a mim, achei-me muito feliz por ter pago tributo a Netuno com dois dias de doença e com quatro ou cinco vômitos, no máximo.

No dia 25, tivemos mar brabo; à uma hora da tarde, vento violento arrebatou um dos nossos marinheiros, que estava na proa e o lançou no mar. Logo fez-se ouvir um grito: Um homem no mar. Subi em seguida ao convés e, passando ao lado do Pe. Pezout, disse-lhe o que havia feito em semelhante ocasião o Pe. Petit, nosso bom confrade; lançou então a absolvição a essa infeliz vítima das vagas. Preparava-se, no entanto, uma embarcação para salvá-lo; mas forte onda sobreveio e fê-lo desaparecer. O nosso homem está perdido, gritou então a maruja.

Os dias seguintes foram muito belos. Em primeiro de março, a umas oito léguas, avistamos Porto Santo, Ilha Madeira. No dia seguinte vimos diversos navios. Um dentre eles, de bandeira inglesa, aproximou-se muito de nós e pediu os graus de latitude e de longitude; depois os dois navios informaram-se mutuamente sobre a partida e destinação, saudaram-se e se despediram. No outro dia, pelas oito horas da manhã, vimos as montanhas de Tenerife e sobretudo o pico, acerca de vinte léguas; mas, tendo quase calmaria total, não pudemos chegar lá. No dia seguinte, quatro de março, quarta-feira de cinzas, ancoramos na baía de Santa Cruz e saudamos a cidade com vinte tiros de canhão. As autoridades e os cônsules de diversas nações, que se achavam na cidade, também honraram os franceses içando a bandeira das suas nações.

Pelas onze horas, os padres, o coirmão, alguns oficiais e eu entramos na cidade. Fomos surpreendidos com a visão de tantos jovens que estavam sem nada fazer; a maioria nos olhava e nos seguia como por curiosidade; o que os surpreendia eram os nossos padres, que estavam de batina e particularmente os seus chapéus de três pontas. Visitamos a igreja que nos pareceu muito bem cuidada. Ficamos muito satisfeitos com saber do cônsul francês que D. Jean-Baptiste Pompallier passou dois meses nesta cidade a caminho da sua querida missão. Tivemos algumas incumbências na cidade; depois a deixamos para entrar na nossa corveta, às quatro horas da tarde.

No dia cinco, às duas horas da manhã, aparelhamos e partimos. No dia doze, às onze e meia da manhã, encontramo-nos diante de St. Louis. Acreditávamos ficar apenas algumas horas na baía, mas, por causa de diversos encargos entre o comandante e o governador, tivemos de ancorar. No dia seguinte, de meio-dia, levantamos ferros para, no dia catorze, muito cedo, ancorar outra vez, agora na baía de Gorée, onde devemos ficar alguns dias. Por volta de onze horas e meia, fomos fazer visita ao pároco, que nos recebeu muito bem, com todas as atenções possíveis. Ofereceu-nos a estada com ele, mas recusamos e não aceitamos, porque lhe ocasionaríamos grande despesa. Tivemos também a alegria de encontrar o administrador apostólico, que nos cumulou de carinho.

O zelandês, de que vos falei na minha última carta, vem de quando em vez aos nossos camarotes, mas não conhecendo bem a sua língua e ele não compreendendo bem a nossa, será muito difícil instruí-lo; faremos, contudo, aquilo que pudermos; seu nome é Etaca. Eis algumas palavras que aprendemos dele ou de certo marinheiro que já esteve naquelas ilhas: segunda-feira, kitemani; terça-feira, tetouré; quarta-feira, waineré; quinta-feira, tahiré; sexta-feira, prahédé; sábado, saredei; domingo, ratapou; uma semana, tika ou latiré; um mês, marama; um ano, tuau …

Irmão CLAUDE MARIE.

Edição: S. Marcelino Champagnat: Cartas recebidas. Ivo Strobino e Virgílio Balestro (org.) Ed. Champagnat, 2002

fonte: AFM Cahier 48 Lettres, p. 36

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