Carta a Marcelino

Pe Catherin Servant

1839-08-15

Carta escrita das missões. A troca de correspondência entre os missionários da Oceânia e os superiores, na França, não era fácil; dependia sempre de alguma embarcação rumando na direção que interessava. O tempo de espera era longo. Nesta sua carta o Pe. Servant fala da recepção de correspondências do Pe. Champagnat escritas quase dois anos antes. Aqui ele relata com simplicidade as suas atividades de missionário, fazendo algumas descrições pitorescas dos deslocamentos por mar e por terra. Interessante salientar o grande amor e a grata recordação que conserva de l?Hermitage.

A.M.D.G.
Sainte Marie dHokianga,
Nova Zelândia, 15 de agosto de 1839.

Respeitável Superior e caro padre:

Acabo de receber simultaneamente duas das vossas cartas, uma de 23 de dezembro de 1836, outra de 31 de março de 1838. Os rasgos edificantes que citais e os sucessos dos vossos estabelecimentos de que falais causam-me viva alegria. Quão cara me é a vossa lembrança e a dos vossos bons Irmãos. Como estou longe de esquecer uma casa que era para mim morada de paz, em que tinha sob o olhar mais de um exemplo de edificação. Como gosto de transportar-me em espírito não poucas vezes àquela casa de retiro; nela confio que rezam sinceramente a Deus por mim.

Aqui se travam numerosos combates contra o inimigo da salvação dos homens. Estamos em liça; cumpre esperar que se conquiste a coroa. As armas da paciência são mui necessárias, como a desconfiança de si e a confiança em Deus e profunda humildade. Desgraçado de mim, se for tão fraco e sensível e desprovido de confiança em Deus.

Que faço aqui, caríssimo padre? De tempo em tempo, corro à direita, à esquerda, em contínua navegação pelo rio Hokianga. Este rio tem infinidade de afluentes que vão em todos os sentidos e que comunicam com todas as tribos. Se queremos visitar os aborígines, as viagens só se fazem por água. O lugar em que habitamos é ponto central para as tribos que abraçaram a fé católica, mas estas tribos estão muito distanciadas de nós. A mais próxima fica a uma légua daqui. As demais estão a duas, três, quatro, cinco, seis léguas. Aqui o que torna as comunicações difíceis com os autóctones é o fato de que não se pode partir senão com maré favorável, o que supõe demora de cinco horas e meia. No inverno, então, ocorrem fortes ventos que encrespam as ondas e tornam a navegação quase impraticável. Com freqüência, as frágeis embarcações dos nativos soçobram. Eles, hábeis nadadores, escapam do embaraço com facilidade; contudo, há pouco, aconteceu deplorável acidente: dezesseis nativos não convertidos quiseram atravessar o rio em tempo muito ruim; todos submergiram, exceto uma mulher, que se salvou a nado.

Não há tanto que temer para os missionários, que sabem evitar tais imprudências e que, aliás, têm embarcações mais sólidas do que as dos aborígines. Se o contato com os aborígines é difícil por água, não o é menos por terra. Muitas vezes necessita-se de um nativo para servir de guia, porque os caminhos são imperceptíveis à vista. Não há muito, fui obrigado a levar os socorros da nossa santa religião a uma senhora inglesa gravemente doente. Atravessei esta parte da Nova Zelândia em toda a sua largura, em viagem de cerca de três dias. Parti sem dinheiro, isto é, sem fumo, que é a moeda da terra; mas nada faltou do necessário. Alguns católicos pagaram nativos para acompanhar-me e até protestantes prazerosamente me ofereceram hospitalidade.

Mas por que caminho se deveria seguir? Imaginai uma senda muito estreita, através de montanhas abruptas, que se encontram a cada instante e que se devem transpor com as mãos tanto quanto com os pés. De um lado e de outro, filas de árvores e arbustos, quase impenetráveis, aos quais nos agarramos para evitar quedas. Imaginai também torrentes inúmeras, que se atravessam aos ombros dos nativos, que vacilam com o ímpeto das correntes. Em caminho, deparamos uma árvore tombada sobre torrente de dez metros de profundidade. Só percebi o abismo, quando estava no meio da travessia. Apenas então os nativos me disseram de tomar cuidado. Então me agarrei à arvore e me arrastei como réptil. Enfim, a viagem terminou bem e consegui administrar os sacramentos à pessoa doente.

Caro superior, eis que vos falo só de viagens. Nada teria de essencial a vos dizer acerca da conversão dos infiéis da Nova Zelândia? Como a messe é rica aqui! Já não sei quantos se dizem totalmente católicos. Há mais de cem nativos batizados. Em breve algumas tribos inteiras poderão receber a grande graça do batismo. O padre Bâty, estabelecido diretor desta missão pelo sr. Bispo, sabe já suficientemente a língua dos aborígines para instruí-los. Logo mais ficarão completamente satisfeitos na sua grande avidez de ser catequizados.

Uma coisa nos ocupa atualmente: a transferência do estabelecimento. Aqui onde estamos não convém, por causa da falta de madeira e de água; essas coisas estão longe de bastar, sobretudo na boa estação do ano, para o uso da casa e dos naturais, que vêm em grande número à missa dominical. O novo lugar indicado pelo sr. Bispo fica em frente, do outro lado do rio. Aí os naturais católicos poderão com facilidade erguer as suas pequenas casas para se abrigarem, quando vêm à oração. Será fácil também levantar uma capela, de que urgentemente se necessita. Até agora, um pequeno aposento serviu de capela, mas é local muito acanhado. Essas construções de madeira exigem grandes despesas, mas esperamos, caríssimo Superior, que a Providência, com a qual contais com confiança, e que os missionários devem invocar com razão em toda a circunstância, virá auxiliar-nos com a cooperação das almas piedosas que vibram pela glória de Deus e pela salvação do próximo.

Como fecho, caríssimo padre, rogo-vos que me permitais exprimir aos nossos queridos Irmãos os sentimentos do coração. Como a minha lembrança ainda não se apagou da memória deles, queiram aceitar este meu testemunho de apego o mais sincero.

Por fim, reverendo padre, aceitai … etc. SERVANT, miss.

Edição: S. Marcelino Champagnat: Cartas recebidas. Ivo Strobino e Virgílio Balestro (org.) Ed. Champagnat, 2002

fonte: AFM CAHIER 48L.30

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