Marcelino Champagnat, um santo

Paul Sester

1998-11-14

Acho que a canonização de Marcelino Champagnat é a ocasião de refletir sobre o que é a santidade, possibilitando dar a esse acontecimento um sentido mais profundo e não apenas superficial. Em nossa linguagem damos à palavra “santo” conotações tão diversas que não sabemos mais o que ela significa, quando a Igreja a atribui, oficialmente, a tal ou tal pessoa. Falamos de um santo homem em sentidos tão diferentes, até ao Papa a quem temos o costume de chamar “O Santo Padre”. Mas, quando queremos designar aquilo que chamamos “um santo do céu”, temos a plena consciência de dar a esse termo um sentido particular: o de uma pessoa capaz de fazer milagres e que praticou durante sua existência as virtudes de maneira heróica, evitou o mal e se esforçou por fazer o bem; alguém que se preocupou de maneira toda especial em procurar a perfeição.

Isso supõe que se considere a pessoa humana como imperfeita, colocada em condições desfavoráveis que deve superar para viver de maneira realizada, conforme sua natureza espiritual. Daí se deduz que, para além da auréola que envolve seu nome, nas profundezas de sua personalidade algo aconteceu que dá plenitude a seu ser e resposta à pergunta do sentido de sua existência, que tantas pessoas se fazem.

Por que estamos neste mundo? Era essa a primeira pergunta de meu catecismo, que respondia: para servir a Deus como meio de chegar ao céu. Resposta suficientemente vaga para satisfazer um espírito dócil, desprovido de senso crítico, mas que não resiste à reflexão um pouco mais profunda. Saída do contexto de uma linguagem cujo único fim era edificar, que sentido tem a expressão “servir a Deus” que, todo-poderoso, não necessita de nenhum serviço? “Deus não precisa de ti, nem de mim, para produzir na sua Igreja o fruto que deseja”, afirma o Padre Afonso Rodríguez,1 que, entretanto, não cessa de dizer que nosso único fim aqui na Terra é o de agradar a Deus.

Se é verdade que em nossa condição de abandono sobre uma Terra, em que todo existente deixa pressentir um Ser superior do qual emana e do qual necessitamos como de um interlocutor, esse fato não é suficiente para abrir-nos o caminho a uma reflexão sobre nossa realidade. A única solução que nos resta é, pois, partir de nós mesmos para explorar as reservas de nossa natureza. No caso presente, isso significa a virada total da perspectiva, isto é, encarar a santidade não do ponto de vista de Deus, mas do ponto de vista da pessoa humana, a mais diretamente em jogo. “É a ti que compete tomar a salvação a sério; a responsabilidade é tua; o interesse é unicamente teu”, diz ainda Rodríguez, referindo-se ao pensamento de Santo Tomás.2

Não é por isso, como se vê por essas citações, que menosprezo os autores de espiritualidade. Ao lado de afirmações ditadas pelo sentimento, por vezes inteiramente gratuitas, o raciocínio lógico e o puro bom senso retomam, às vezes, seu direito, malgrado a desconfiança que esses autores professam em relação à reflexão filosófica, reputada pagã. Eles não cessam, no entanto, de se servir de dados da Psicologia, preferindo falar da tendência à perfeição, em vez da santidade propriamente dita, da caminhada, em vez do fim a que ela deve levar.

É o caso da obra já citada do Padre Rodríguez, sobre a qual vou me apoiar sobretudo na primeira parte. Faço-o por duas razões: porque ele é daqueles cuja leitura o Padre Champagnat recomendava a seus Irmãos e porque Rodríguez confirma em vários lugares, mutátis mutândis, a idéia que me faço da santidade.

Rodríguez hoje

Afonso Rodríguez nasceu em 1526, em Valhadolide, Espanha. Vinte anos mais tarde, em 1546, entrou na Companhia de Jesus. A partir de 1549 lecionou Teologia Moral; depois, a partir de 1541, foi mestre de noviços em Mantilha durante 33 anos, sendo encarregado de “fazer as exortações espirituais que se costuma fazer semanalmente, em todas as casas da Companhia” (p. III). Após uma permanência em Roma, em 1594, na Congregação Geral de sua Ordem, ficou 12 anos em Córdova como diretor espiritual de sua Província. Em 1606 foi nomeado mestre de noviços em Sevilha, onde 10 anos mais tarde, após um repouso de 2 anos, morreu a 21 de fevereiro de 1616, com 90 anos de idade.

Depois de 12 anos passados em Mantilha, recolhendo tudo aquilo que tinha sobre o assunto, compõe a obra intitulada: “Prática da Perfeição Cristã e Religiosa” (p. IV)”. Publicou-a apenas na véspera de sua morte, em 1615. Levando em conta as ocupações que teve, esse livro é verdadeiramente a obra de sua vida, no duplo sentido de ter posto nele todo o seu saber, e de nele só propor que se siga aquilo de que ele mesmo deu o exemplo.

Em 1.634 páginas in-12 e em 3 volumes, desenvolveu em todos os pormenores o caminho da perfeição de uma pessoa desejosa de dar à sua vida toda a plenitude possível. O conhecimento que tinha da complexidade da natureza humana, faz com que a análise psicológica de hoje possa aí se encontrar, se soubermos nela recolher os elementos esparsos desordenadamente através de um número impressionante de exemplos e citações. É essa tarefa que tenciono empreender, seguindo um plano ditado pela Antropologia moderna.
O devir

“A verdadeira sabedoria que devemos desejar – diz Rodríguez, a partir da primeira página de sua obra – é a perfeição cristã, que consiste em nos unir a Deus por amor… É o maior, ou para dizer melhor, o único negócio que temos; foi para isso que fomos criados”. E no capítulo III do segundo tratado sobre a intenção de nossos atos, cita Santo Ambrósio, interrogando-se sobre “o motivo por que Deus na criação do mundo, após ter criado as coisas puramente corporais e os animais, louva-as no mesmo instante, … mas quando cria o homem, parece que o deixa só, sem louvor, uma vez que não acrescentou logo que ‘isso era bom’, como acrescentara para todas as outras coisas” (op. cit. I p. 99). Rodríguez responde: “É porque a bondade e a perfeição do homem consistem unicamente naquilo que está escondido dentro dele”; “é preciso que mostre primeiro seu aspecto íntimo” – acrescenta Santo Ambrósio. Erich Fromm, pensador alemão, precisa: “Isso significa que os animais e as outras coisas estavam acabados desde a criação, mas o homem não. Conduzido pela palavra de Deus, o próprio homem pode … desenvolver sua natureza íntima conforme o processo da história”.3 É a mesma coisa que dizer que o homem é um ser em devir, como afirmam os filósofos existencialistas: “Torna-te aquele que tu és”.

Eles entendem com isso que o ser humano nasce portador de todas as virtualidades que o caracterizam, mas não as possui senão em potência; é preciso que ele próprio as atualize por seus atos, durante sua existência terrestre, no seio do ambiente social, histórico e geográfico de que sua vida será tributária. É a oportunidade que a existência confere a todo ser humano de poder fazer-se a si mesmo, de construir, de algum modo, sua própria personalidade cujas bases, certamente, lhe são dadas, mas sobre as quais pode construir livremente seu edifício espiritual, desabrochar seu próprio eu, diferente de qualquer outro.

Se há necessidade de provas para justificar essa teoria, observemos em primeiro lugar aquilo que acontece na natureza ao nosso redor. O devir se encontra por toda a parte, particularmente na geração dos seres vivos. A semente, mesmo a menor, carrega inscrito em si mesma todo o programa de desenvolvimento futuro do ser para toda a duração de sua existência. Por que o homem escaparia a essa lei geral de criação? A necessidade que tem de se educar, de desenvolver sua inteligência e, se é religioso, de tender à perfeição, supõe exatamente que sua personalidade não está acabada, mas se encontra, no dever como no poder de se desenvolver, de tornar-se ela mesma.

O desejo

Essa última palavra não designa unicamente o alvo que desejamos atingir, mas também todo o caminho para lá chegar. Além do querer viver de todo ser vivente, a consciência humana experimenta-o como um desejo de ter seu lugar no mundo. O psiquismo humano não é essa água tranqüila de um lago onde se espelham as margens; é muito mais a corrente que, espumando, abre seu caminho entre os rochedos. Calmo ou revolto, o desejo habita-o sempre, de tal modo que Luís Lavelle pôde definir o homem como “um ser de desejo”.

Uma passagem do Padre Rodríguez, a esse respeito, necessita de um esclarecimento. “Nós só desejamos as coisas na medida em que as estimamos; visto que a vontade é uma força cega que segue apenas aquilo que o entendimento lhe propõe, a estima que este tem de um objeto torna-se necessariamente a regra de nossos desejos; e como é a vontade que comanda em nós todas as outras faculdades interiores e exteriores da alma, somente nos acostumamos a buscar as coisas e a trabalhar por adquiri-las, quando a vontade é levada a desejá-las.”4 Na espiritualidade voluntarista de que fala, é a vontade que comanda o desejo. De fato, porém, é o contrário: o desejo é o primeiro em relação à vontade, pois não saberíamos querer uma coisa que não fosse antes desejada. A estima considerada como regra de nossos desejos não é senão o próprio desejo orientado pelo valor. Segue-se que o desejo não é algo de superficial; é um constituinte do psiquismo humano, é como que sua energia viva.

O objeto a que ele visa é sempre entrevisto pela consciência como um valor: o bem, o belo, o útil ou o agradável. No entanto, nenhum objeto concreto é capaz de esgotá-lo. Quando o possuímos, eis que o desejo se direciona sobre outro diferente, até melhor. É evidente, por conseguinte, que o valor concreto de um objeto nunca corresponde àquele que se entrevê. É possível também que o desejo vise a um ideal que, por definição, jamais pode ser atingido.

Apresenta-se então a pergunta: É possível encontrar aquilo que poderá satisfazer totalmente o desejo que corrói nosso coração? Em todo o caso, isso suporia a existência de um valor do qual todos os valores particulares seriam apenas manifestações. O filósofo Luís Lavelle, em sua obra “Les Puissances du moi”, conclui sua análise do Desejo, que ele considera ao mesmo tempo que o conhecimento, como uma característica de nosso ser, dizendo que “o Desejo como o conhecimento não poderia trazer tranqüilidade senão quando o indivíduo e o Todo conseguissem reunir-se… O Desejo se nos apresenta então como a essência do eu. Somente ele lhe dá o movimento e a vida. Somente ele é capaz de estabelecer uma transição entre aquilo que somos e aquilo que procuramos ser”.5 Podemos, pois, dizer que o desejo mais profundo do homem é ser, e ser em plenitude tal como o quis o Criador, participando do seu Ser absoluto. O Gênesis, na narração da queda de nossos primeiros pais, parece confirmar bem essa tese. Se a serpente replica à mulher: “Vós sereis como deuses” (Gn 3,5), é que ela não era estranha a esse desejo, pois a tentação somente empenha em caminhos traçados.
O Padre Rodríguez poderia encontrar aí argumento para justificar sua longa dissertação sobre a diferença entre o desejo das coisas materiais e das espirituais. Quanto às primeiras, “apenas conseguimos o que se desejava – diz ele – começamos a desprezá-lo e a lançar o olhar sobre outra coisa, de que nos aborrecemos igualmente, logo que a possuímos”. Quanto às segundas, “quanto mais as saboreamos, mais nos lançamos com ardor a buscá-las, pois não nascemos para o mundo e, desse modo, nada no mundo pode nos satisfazer inteiramente”.6

A ação

Alhures, o mesmo autor acrescenta: “Quando esse desejo está verdadeiramente impresso em nossa alma, é preciso que nos apliquemos com cuidado e ardor em adquirir aquilo que desejamos, pois somos naturalmente industriosos em buscar e encontrar as coisas a que nossa inclinação nos leva”,7 deixando entrever que o desejo, qualquer que seja, não é suficiente para realizar o devir: é preciso a ação. Isso é tão evidente, que é quase inútil demonstrá-lo. Quem não faz nada, não é nada. Apoiando-se sobre a palavra do Salmo 62, 1: “Tu devolves a cada um conforme as suas obras”, o Padre Rodríguez afirma: “É uma constante que o estado bom ou ruim de nossa alma depende de nossas boas ou más ações, pois seremos como são nossas obras, e que finalmente são elas que revelam aquilo que somos”.8
Com efeito, considerando um desportista, como pode ele conhecer todas as possibilidades que carrega, se não exerce seu esporte e não se dimensiona com outros que cultivam a mesma disciplina? Acontece a mesma coisa com todo indivíduo desejoso de explorar suas capacidades, de realizar suas aptidões latentes. É nesse sentido que podemos afirmar, categoricamente, que a pessoa humana se constrói a si mesma. “Fazer e ao fazer fazer-se”, disse com razão o filósofo Jean-Paul Sartre.

Mas é preciso ainda saber bem em que consiste esse ato criador. A respeito disso, Rodríguez se estende longamente sobre o que devem ser nossas ações para que contribuam ao nosso avanço espiritual, que outra coisa não é senão a realização de si mesmo. “Não é bastante, para nosso adiantamento espiritual e para nossa perfeição, fazer as coisas, é preciso fazê-las bem”,9 adverte imediatamente. Relembra assim duas condições necessárias para que sua ação realize de fato seu devir.

A primeira é aquilo que os filósofos chamam de valor. Há um valor subjetivo, que nasce do desejo do sujeito por um objeto que julga capaz de satisfazê-lo. Quanto mais se deseja um objeto, tanto mais se está disposto a pagar para adquiri-lo, sem se preocupar com seu valor intrínseco. O valor é dito objetivo quando se trata da qualidade boa ou má da coisa ou da ação. Quanto ao que nos concerne agora, chamarei bom àquilo que vai ao encontro de minha natureza, e mau, àquilo que a contraria. Por conseguinte, somente o bom deve ser procurado por aquele que assume a tarefa de realizar seu devenir.

Designo a segunda condição com a palavra compromisso, querendo significar com isso a atenção, a consciência e a aplicação requeridas pela ação, para que a pessoa possa atribuí-la a si mesma. Na medida em que me comprometo com minha ação por uma decisão livre e voluntária, assumindo executá-la sozinho, posso dizer que é minha e, por conseguinte, criadora da minha personalidade. Bem nesse sentido, Rodríguez acrescenta uma advertência: “O assunto da perfeição cristã não é assunto que deva ser feito à força, é preciso que o coração a empreenda”.10

Além disso, quando pretende que “nosso progresso e nossa perfeição consistem apenas em duas coisas: fazer aquilo que Deus quer que façamos, e fazê-lo como Ele quer que o façamos”,11 traduzo isso pela necessidade de agir segundo nossa natureza, pois aquilo que Deus quer de nós é que sejamos nós mesmos, tais como nos criou. “A glória de Deus é o homem de pé”, diz Santo Ireneu.

A superação

Uma vez satisfeitas todas essas condições, não é suficiente um único ato para realizar o devir, salvo em casos excepcionais, pois ele sozinho nunca esgotará todas as possibilidades de um ser. É o exercício que faz o mestre, diz-se, mas com a condição de que o ato repetido siga o desejo de sempre fazer melhor. Como o desportista que busca sempre ultrapassar suas próprias performances, nossa tendência a desabrochar plenamente excita nosso desejo de ir sempre mais longe. Para que isso aconteça, temos que nos superar a nós mesmos. Querer adquirir esse mais-ser, que inquieta o mais íntimo de nosso coração, exige que o busquemos naquilo que ainda não somos, além de nós mesmos, superando-nos.

Parar no caminho por causa da fadiga, ou ter como objetivo somente atrair sobre si a boa opinião dos outros, seria um erro, pois seria fechar-se sobre si mesmo. O autor do tratado da Perfeição ameaça inicialmente com o adágio bem conhecido: “Parar é recuar”. Em seguida apresenta seis capítulos do terceiro tratado, “da retidão e da pureza de intenção”, para expor toda a malícia possível da “vanglória” que, segundo ele, consiste em desviar sobre as criaturas a honra e a glória devidas somente a Deus.

Com Luís Lavelle, pode-se ver a situação de maneira inteiramente diferente. Apresenta-a em sua obra “O Erro de Narciso”, de que resumo o início em algumas palavras. É conhecida a fábula de Ovídio narrando a aventura de Narciso. “Está com 16 anos… Tem o coração puro… Para mitigar a sede inocente, eis que se dirige a uma fonte virgem onde ninguém ainda se tinha mirado. Subitamente descobre aí sua beleza e não tem mais sede senão de si mesmo… É sua beleza que daqui em diante constitui o desejo que o atormenta, que o separa de si mesmo mostrando-lhe sua imagem e que o obriga a buscar-se a si mesmo onde se enxerga, isto é, onde não está mais… Mergulha os braços para alcançar esse objeto, que é apenas uma imagem… E agora, à beira da fonte, como testemunha de sua miserável aventura, subsiste apenas uma flor cujo coração, cor de açafrão, está circundado de pétalas brancas.”12 Seu erro foi parar para contemplar sua imagem, não compreender a irrealidade de uma imagem, não saber ultrapassá-la. Seu ser e seu devenir fixaram-se, portanto, numa coisa, bela sem dúvida, mas não mais que um nenúfar. “Narciso desaparece na fonte, pois quer que sua belíssima imagem ocupe todo o lugar de seu ser, como aconteceu com Lúcifer quando se tornou Satanás.”13

A ação só pode, pois, desabrochar e desenvolver o ser do agente se for dominada por um desígnio mais elevado que ela, desígnio que a ultrapassa e solicita o agente para além da realização dessa ação. Se é o desejo de ser que nos anima, não será uma ilusão reter o impulso sobre um objeto que, por definição, nos será sempre estranho? Somente o Ser absoluto, de quem temos nosso ser, poderá nos conferir esse mais-ser que nos plenificará. A palavra do Evangelho: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” é, sem mais nem menos, o convite do Senhor a realizarmos nosso devir até à plena posse do ser de que somos capazes, como o Ser absoluto o é do seu. Daí a exigência de que cada uma de nossas ações que, desde a sua realização, cai na finitude, seja ultrapassada, negada por assim dizer, ou aniquilada, segundo Jean-Paul Sartre, a fim de deixar o campo livre para nossas ambições. Estar em condição de recomeçar tudo de novo, apagando o passado para conquistar novas alturas com ardor renovado, como dizia São Paulo: “Esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto…”.14 Rodríguez constrói sobre nisso, servindo-se das palavras de São Basílio e de São Jerônimo que, no dizer dele, “ensinam-nos que quem quer ser santo, deve esquecer o bem que fez e pensar continuamente naquilo que lhe resta por fazer”.15

A Liberdade

Depois disso, será ainda necessário voltar sobre o caráter essencial sem o que a ação não atingiria a pessoa, isto é, a liberdade? Sem ela, com efeito, a personalidade não está em jogo, nem, por conseguinte, seu devir que não pode conceber-se sem a responsabilidade, fruto da liberdade. O devir sendo tão-somente o desabrochar da personalidade, nada daquilo que não for ela mesma poderá se realizar. De onde se conclui que ela é inteiramente responsável pelo seu devir, sem escusa nem recurso.

É preciso bem entender a palavra liberdade, pois na prática é interpretada de diferentes maneiras. Segundo o sentido mais geral, ser livre é ter a faculdade de fazer o que se quer, de poder agir sem constrangimento. Nesse caso, freqüentemente a liberdade só é exterior. Ora, existe outra, a interior. Se me é permitido, num país democrático, fazer e dizer aquilo que quero, dentro dos limites da lei e da moral, será que terei também a certeza de não estar sob nenhuma influência que me determina mais num sentido que em outro? Não serei o escravo de alguma paixão, de tendências a cujas solicitações não tenho a coragem de resistir?

Vimos que o querer está sempre animado por algum desejo que deriva finalmente, de uma ou outra forma, do desejo absoluto de ser. Mas esse desejo é, por assim dizer, compensado na vida concreta por desejos particulares que lhe correspondem, mais ou menos longinquamente, conforme a maneira de os interpretar. Esses desejos derivados só são determinantes na medida em que a vontade os aceita ou recusa. Porque muitas vezes, escondendo-nos sua origem profunda, nos extraviam por caminhos que não conduzem à meta realmente desejada. Daí a necessidade de nos libertar dessas miragens enganadoras e deixar agir o desejo que no íntimo de nós mesmos sentimos ser o autêntico caminho de nossa realização pessoal.
É verdade que nas condições atuais em que nos encontramos, mergulhados no mundo material que nos solicita de todos os lados, não é fácil libertar-nos dos atrativos mesmo interiores ou das paixões que são como que excrescências de nosso elã vital. A verdadeira liberdade não é dada totalmente pura; cabe-nos joeirá-la, conquistá-la, muitas vezes às custas de duro combate.

Tal é o preço que devemos pagar para que nossas ações sejam totalmente responsáveis, isto é, para que sejam realmente nossas. Somente com essa condição nossas ações serão geradoras de nossa própria personalidade, partindo de nosso devir. É o que expressa ainda o Padre Rodríguez em outros termos que é fácil de substituir pelos que empregamos aqui: “Nosso progresso e nossa perfeição consistem na perfeição de nossas ações, … quanto mais forem santas e perfeitas, mais também seremos santos e perfeitos. Suposto isso como infalível, é ainda verdadeiro dizer que nossas ações terão mais mérito e perfeição, conforme nossa intenção for mais reta e mais pura, e que nos proponhamos um fim mais elevado e mais sublime, pois a intenção e o fim são aquilo que dá o caráter às ações”.16

Esse caminho demasiado idealista parece árduo. É exatamente o caminho estreito de que fala o Evangelho. É o caminho da santidade, pois devenir e santidade se identificam. Mas convém não esquecer duas coisas. De um lado, o Ser absoluto, apresentado como fim de nossa caminhada, não é esse Ser inatingível e longínquo, mas o Deus de amor, eternamente presente para sustentar nossos esforços. De outro lado, é inegável que nossas alegrias mais profundas são suscitadas por nossas vitórias sobre nós mesmos e a realização de nossos desejos mais puros, no sentido pleno do termo. É pois possível, malgrado a distância que nos separa desse Deus longínquo, unir-nos a Ele pelo amor, para o qual nosso ser aspira, pois nele encontra sua plenitude e sua perfeição.

Marcelino Champagnat

É impensável que o Padre Champagnat, que provavelmente leu o Padre Rodríguez, o tenha entendido do modo como acabamos de ver. Ele não tinha os meios para isso. No entanto, sua intuição, sustentada por um juízo sólido e realista, possibilitou-lhe interpretá-lo de um modo pessoal, constituindo isso a base do seu apostolado. Sua espiritualidade, tal como a deixa aparecer espontaneamente, se diferencia da do Padre Rodríguez por uma intimidade familiar e profunda, por relações sempre mais livres e confiantes com Deus. Basta lembrar a linguagem espirituosa que manteve até nas horas mais graves que precederam sua morte e a forma coloquial que dava às suas orações espontâneas. Além disso, considerando sua atividade transbordante e sua preocupação em só fazer a vontade de Deus, como duvidar que não considerasse a obra que lhe foi confiada pelos colegas de seminário como uma missão vinda de Deus e que devia realizar ao preço de sua própria salvação? Efetivamente, na medida em que, malgrado suas deficiências, dedicou-se a ela, realizou o devenir inscrito em sua natureza.

Mas quem pode avaliar essa medida, saber até onde sua adesão e sua obediência às propostas divinas puderam levá-lo? De sua vida interior, nunca falou, nem a deixou transparecer, a não ser talvez àqueles que o freqüentavam, àqueles que formou por seus exemplos e suas palavras. É a esses, portanto, que é necessário interrogar, particularmente o Irmão João Batista, seu biógrafo e autor de numerosos escritos feitos com a intenção de nos transmitir o espírito do Fundador.

Ora, numa de suas obras, intitulada “Sentenças, Lições e Avisos do venerado Padre Champagnat”, dois capítulos trazem o pensamento deste sobre “o que é um santo”, partindo da maneira como encarava seu próprio ideal. São esses dois textos que vou examinar primeiro, para reconhecer como o Padre Champagnat concebia “um santo que vive ainda sobre a terra”, antes de examinar como ele próprio viveu a santidade.

O que é um santo?

O capítulo XX da obra citada trata das 6 características indispensáveis para ser um santo, a saber: “Um homem que teme o pecado, mais do que todos os males do mundo, e foge dele mais que da morte; um homem solidamente piedoso; que ama Jesus Cristo; um homem obediente, humilde e mortificado”. Faço notar, inicialmente, que esses termos estão em itálico no texto, para mostrar que são mesmo do Padre Champagnat. Por outro lado, não se deve esquecer que ele se dirige aos Irmãos, particularmente aos noviços, para estimular-lhes o fervor na vida religiosa.

Pode-se dizer que trata do assunto superficialmente, descrevendo o santo em seus aspectos exteriores, e o narrador em seu comentário tem o cuidado de ficar só nesse nível. Sua preocupação, aliás, se limita a justificar os ditos do Padre em vez de explicá-los, de aprofundar seu sentido e as nuanças com que o autor os exprimia.

Essas 6 características podem ser reunidas em três grupos: de um lado, três atitudes perante Deus: temer o pecado mais que todos os males do mundo, ser um homem de oração, amar Jesus; de outro lado, três virtudes que um santo deve praticar: a obediência, a humildade, a mortificação. Essas três atitudes estão ordenadas do interior para o exterior, do negativo para o positivo e são dadas cada uma por si mesma, sem relações entre si. Não é dito que o santo teme o pecado, porque é o oposto do amor; não é tampouco dito que rezar é entreter o amor por meio de uma tomada de contato íntimo com Deus; o amor é apresentado como uma “simpatia por Jesus”, como “a marca dos eleitos”, portanto, de algum modo, um amor muito platônico. Certamente essa passagem não se inspira em Rodríguez, que, como vimos, acentua fortemente, desde o início, o amor como fundamento da santidade, ao passo que não menciona expressamente o temor do pecado, pelo menos nos primeiros tratados. As três virtudes, pelo contrário, são bem aquelas sobre as quais baseia a santidade, embora o P. Champagnat deixe entender que é o exemplo de Jesus que determina sua escolha.

Na conclusão desse capítulo, volta com insistência sobre essas características que constituem “de tal modo a essência e os elementos da santidade, que na ausência de uma só delas, não há santidade”.17 Em seguida enumera-as ainda três vezes, mas esquecendo cada vez uma ou outra. Assim, o temor do pecado é retomado só uma vez, a mortificação, duas vezes, enquanto que o amor de Jesus não aparece mais. Estamos, portanto, longe de Rodríguez, para quem a “perfeição cristã consiste em nos unir a Deus por amor”. Por conseguinte, mais do que da santidade propriamente dita, trata-se aqui somente dos meios de atingi-la.

O capítulo seguinte da mesma obra retoma o tema de maneira análoga, sem aprofundá-lo. Enumera os efeitos que uma vida santa pode produzir na pessoa, fazendo dela “uma luz que ilumina e um sol que vivifica;… um modelo para todo o mundo; … o instrumento da bondade de Deus; …mesmo que seja ‘uma pessoa como nós’, mas que jamais se queixa nem do tempo, nem do trabalho, menos ainda dos superiores ou de algum confrade, quaisquer que sejam seus caracteres ou fraquezas; nem mesmo dos inimigos e dos perseguidores, menos ainda de suas enfermidades corporais ou de suas dificuldades espirituais”. A apresentação binária dos últimos pontos, explicitando primeiro seu lado positivo e depois o negativo, mostra que não se trata de uma descrição, mas de uma exortação. Quanto aos motivos de contentamento nas situações descritas, resumem-se na prática das virtudes de mortificação, humildade e obediência, porque ela dá ocasião de somar méritos e ganhar o céu, tudo convergindo para o amor de Deus: “Eles encontram por toda a parte o bom Deus que é único objetivo do seu amor” (239). Sem ser realçada, essa última frase subjaz em todo esse texto e certamente revela uma segunda intenção do Fundador. É pena que o narrador não a tenha expressado mais claramente para resumir o todo, unificá-lo numa única disposição de apego a Jesus, objetivo cuja busca faz passar por cima de todo o resto. Veríamos então a pessoa assumir-se a si mesma nas condições que lhe são propostas para realizar seu próprio devir, sob a atração do amor de Deus, seu valor supremo.
Ter-se-á notado a ausência do apostolado, que apenas se pode adivinhar sob o enunciado dos dois primeiros pontos: “luz que ilumina e sol que vivifica” e “um modelo para todos”. Propondo-se falar da santidade de maneira genérica, não a aplica ao Irmão em particular, o que não invalida a opinião segundo a qual o Ir. João Batista não soube destacar o elo que o Fundador deixa entrever, e que o último Concílio colocou em plena luz entre a tarefa apostólica e a vida religiosa.

No entanto, o primeiro capítulo dessa obra intitulado “O que é um Irmão, segundo o Padre Champagnat”, deixa aparecer mais claramente esse aspecto, principalmente em seus dois primeiros pontos. O Irmão, explica o Fundador, é:

1 – “Uma alma predestinada a uma grande piedade, a uma vida muito pura, a uma sólida virtude; uma alma sobre a qual Deus tem desígnios particulares de misericórdia; uma alma chamada a conhecer Jesus Cristo, a amar a Deus, a devotar-se por inteiro e para sempre ao serviço de Deus; uma alma predestinada a uma grande glória e que nada pode satisfazê-la sobre a terra…”.

2 – “O colaborador e o associado de Jesus Cristo na santa missão de salvar as almas.”

Aqui o Padre Champagnat se põe diretamente de acordo com o ideal entrevisto para seus Irmãos. Não fala de santidade, mas da vocação que é, em suma, o caminho do devir a que cada um se sente chamado. Sem entrar em considerações filosóficas, indica claramente o fim onde cada ser humano encontra sua realização. Não é menos explícita a referência à ação, apontando duas de suas características essenciais: a meta, isto é, chegar ao estado pleno previsto pelo Criador para sua criatura, e o modo – superando-se a si mesmo em benefício único do outro – subentendido no esquecimento de si.

O 4.o ponto desse capítulo refere-se implicitamente à liberdade, quando se trata de um Irmão substituir “os soldados e policiais”. Além do prenúncio idealista de uma sociedade sem leis, será que não podemos evocar a idéia de São Paulo, segundo a qual Jesus Cristo nos liberta da lei para tornar-nos verdadeiramente livres, únicos responsáveis perante Ele, conforme a palavra de Santo Agostinho: “Ama e faze o que queres”?

Uma realização concreta

Longe de querer fazer falar os textos e atribuir ao Padre Champagnat aquilo que ele não disse, não tenho outra intenção que a de comunicar minha convicção de que o pensamento de Marcelino Champagnat ultrapassa aquilo que pôde dizer e, com maior razão, aquilo que os Irmãos narraram dele, levando em conta o que puderam compreender. Como o filósofo de quem fala H. Bergson, que nunca consegue comunicar sua intuição em toda a sua profundidade18, também Marcelino Champagnat não conseguiu comunicar com palavras claras, aquilo que pôde conceber intuitivamente da vida humana. Mas tudo quanto soube dizer e fazer é disso a manifestação mais ou menos fiel. Por conseguinte, é nesse dizer e fazer, perante as circunstâncias do momento, que temos a sorte de descobri-lo.

A ambiência corporal, familiar e social marcaram certamente Marcelino Champagnat mais do que se pensa. Ele conserva da natureza uma nobreza interior que o ambiente campesino da montanha não lhe permite exteriorizar muito. Ainda que proveniente de uma família não desprovida de valores materiais e espirituais, sua educação o mantinha antes na reserva, ditada pelos princípios de bom senso e honestidade, condições religiosas de uma família numerosa e impregnada de fé cristã. Seu temperamento, pelo que se pode depreender de seus biógrafos, alinha-se, por muitas características, no grupo dos biliosos, que Mounier descreve pela superatividade motora, uma força física contrastando com a magreza aparente, reações vivas, a tez amarela, a face angulosa, os olhos profundos, um olhar móvel e ardente, lábios firmes e cerrados, o gesto vivo e preciso, a voz clara e breve, a elocução fácil e rápida.19 Era ativo, sem tergiversar nem refletir longamente antes de executar aquilo que tinha decidido. Mais prático do que teórico, entrevia o objetivo sem especular demais sobre os meios de atingi-lo, confiando na sua coragem e habilidade, indo por vezes até à temeridade.

Rejeitado pelos estudos escolares que abandonou por pretextos fúteis, era certamente para seu pai tanto um aluno dócil quanto dotado para aprender toda a sorte de trabalhos manuais e até mesmo virar-se em atividades lucrativas, como o comércio de carneiros. Em face do real, da matéria que se deixa facilmente amoldar mediante o respeito das leis elementares da natureza, pôde desenvolver seu gosto pelos empreendimentos. Pelo contrário, a atividade política, a chuva de idéias, a exibição sobre o palco das reivindicações, tudo isso deveria parecer-lhe demasiado irreal para atrair-lhe o interesse. Em seu espírito inclinado para o concreto, não considerava a revolução como uma fera?

No entanto, o domínio do incompreensível e do sobrenatural exercia forte influência sobre ele. Desde a mais tenra idade, como em todo lar cristão, sua mãe semeou-lhe na alma os maiores valores espirituais e sobretudo religiosos. É dela, coadjuvada por uma tia religiosa, que recebeu os elementos da religião cristã: o conhecimento de Deus, a prática da oração e dos deveres para com o Mestre do céu e da terra. Podemos pensar que, como criança, a religião fascinava-o. Filho da campanha com suas germinações secretas, circundado por montanhas com bosques sombrios cheios de mistérios, o sobrenatural devia ter dominado facilmente sua sensibilidade. Além disso, apreciador dos ornamentos e da beleza das liturgias e até mesmo das manifestações teatrais, seu coração devia vibrar com o fasto das cerimônias em honra de Deus, que ele imaginava como um Senhor invisível, mas presente, dada a seriedade retratada em todos os rostos. Sua mãe era mulher caseira, contrariamente a seu marido, solicitado pelos negócios públicos. Ela se preocupava pelo bom funcionamento de sua numerosa prole. Hábitos de ordem e de exatidão, de sábia modéstia nas atitudes, de reserva nas relações externas, tais eram os pontos sobre os quais recaíam seus cuidados vigilantes, e as exigências de que imbuía o comportamento dos seus. O jovem Marcelino, último da família, após a morte prematura de seu irmão mais novo, seguindo o exemplo de seus antepassados, deixava-se modelar nessa fôrma, contentando-se em gastar sua vitalidade na aceitação dessa situação, por desconhecer outra coisa.

Assim, quando o padre promotor vocacional, sob encomenda veio dizer-lhe, após uma curta conversa pessoal: “É preciso que se torne padre, Deus o quer”, como duvidar que tenha sido perturbado por uma dupla emoção: de um lado, o espanto diante de tal revelação; do outro, a alegria de entrever a realização de um desejo que certamente já acariciara secretamente, mas sem jamais declará-lo, por receio de evidenciar sua inconseqüência. Ainda depois desse encontro, quando declara que será padre, acrescenta logo: “visto que Deus o quer…”. Com efeito, não é levianamente que insiste sobre essa condição, pois, com a obediência ao apelo de Deus, sua inclinação pela aventura encontra aí um alimento.

Ei-lo decidido, aconteça o que acontecer. De agora em diante, agarra seu futuro com ambas as mãos. Seu caminho, longe de estar sequer fracamente balizado, é apenas uma senda de montanha, obstruída por galhos e raízes, e sua luta com os obstáculos começa. Os menores são os conselhos contrários da vizinhança e a morte inesperada do pai. Possui algumas reservas financeiras e a conivência da mãe que não hesita em fazer com ele uma peregrinação a La Louvesc. Quanto aos estudos, que acredita dependerem somente dele, acha que sua tenacidade corajosa haverá de superá-los.

Resignar-se a abandonar mais cedo ou mais tarde a casa paterna, provoca-lhe um leve estremecimento de coração, logo apagado pelo sentimento de se encontrar num mundo novo de jovens, geralmente mais idosos e adiantados que ele. Inicialmente tímido e desajeitado, sua índole não tarda a se revelar. O edifício do seminário menor de Verrières nada tem realmente que o possa impressionar por muito tempo. Pelo contrário, seu tamanho acima da média, seu corpo bem talhado, sua palavra fácil e engraçada devido às suas expressões regionais e às réplicas irônicas, conferem-lhe uma superioridade que o atrai para “o bando alegre”. Mas por pouco tempo, sem dúvida, pois seus mestres, depois de terem colocado ordem na casa, lhe confiam a vigilância do dormitório. Ele mesmo, em suas resoluções, deixa entrever uma verdadeira conversão: “Conversarei indistintamente com todos os meus colegas, apesar da repugnância que possa sentir, pois reconheço que essa repugnância tem sua raiz no orgulho. Por que preferir-me a alguém? Seria por causa de meus talentos? Eu sou o último da aula. Seria por causa das minhas virtudes? Estou cheio de orgulho. Seria pela formosura do meu corpo? Foi Deus quem o fez e é bastante desajeitado. Em suma não passo de um punhado de pó”. No entanto, precisará de tempo para dominar sua loquacidade, sentindo-se na obrigação de escrever ainda na sua resolução: “Nos recreios procurarei não ser exibido em palavras” (cf. Vida, 1989, p. 17).

Apesar de tudo, sua vida de relação guardará, aliás para proveito seu, as características aqui assinaladas. Sua palavra fluente, onde muitas vezes a propensão pelos ditos espirituosos e pitadas de humor têm livre curso, causará prazer ou admiração a seus familiares até o leito de morte, como testemunha o Padre Maitrepierre.20 Durante os recreios, gostava de mexer com um ou outro Irmão menos ingênuo do que aparentava, para ouvi-lo reagir com uma resposta engraçada que divertia os circunstantes, não para humilhar, mas para testemunhar interesse pela pessoa. Mais do que as palavras, isso mostra o amor e a confiança recíprocas que marcavam as relações. Visto que o P. Champagnat votava aos Irmãos uma afeição viril, profunda e sem reticências, estes o amavam como a um pai, em toda a extensão do termo, inteiramente devotado em procurar-lhes o melhor que podiam esperar. “Era firme, sim, por certo: tremíamos todos somente ao som de sua voz, sob um único de seus olhares; mas era sobretudo bom e compassivo, era pai …”, declara o Irmão Francisco. Um conjunto de qualidades compunha-lhe essa personalidade sólida e ao mesmo atraente sobre a qual alguém pode se apoiar, sentir-se seguro, sustentado por amável compreensão, calma e serena. Exercia também forte domínio e influência sobre seu ambiente, sempre mais de boa mente receptivo, por ver nisso uma ajuda inteiramente gratuita para responder à vocação comum.

Essa gratuidade e essa abnegação, liam-se em diferentes aspectos da conduta de Marcelino Champagnat. Apesar de todo o interesse que votava a seus Irmãos, tomava o cuidado de lhes garantir uma certa autonomia, mesmo quando a estrita necessidade não o exigia. Nos primeiros anos, sozinhos na moradia, nada mais natural que se escolhessem um superior do mesmo nível. Além disso, vindo compartilhar de sua pobre moradia, Marcelino Champagnat não pretendia “assumir a direção da casa”, pois “além de as ocupações no ministério não lhe permitirem, compreendia que esse encargo não era de sua competência, mas da alçada do Irmão Diretor”.21 Mais tarde, em l’Hermitage, ainda que se misturasse com os Irmãos no recreio, “sua mesa estava à parte no refeitório, o que significava que comia sozinho”.22 Quanto à direção espiritual dos Irmãos, por respeito à liberdade deles, por falta de tempo e, sem dúvida, também por ter consciência de suas carências do ponto de vista teológico, preferia confiar essa tarefa a outros. Daí a preocupação de ter outro sacerdote consigo, primeiramente procurando o P. Courveille, depois pedindo a ajuda, junto ao arcebispado, do jovem P. Séon. Nessa mesma linha, recomenda em suas cartas que o pároco desempenhe o ofício de diretor espiritual dos Irmãos que se ocupam dos jovens de sua paróquia. Chega mesmo a acrescentar, numa pequena frase consignada por seu biógrafo, sobre a qual não temos motivo para duvidar que não seja dele: “Ao lhes falar desta maneira eu cumpro um dever de consciência. Agora cabe a vocês cumprir o seu”.23 Isso dizia aos Irmãos expondo-lhes a necessidade de dar o catecismo, encarregando-os de certo modo da responsabilidade da obra, achando que a missão dele era somente de impulsioná-los a isso.

A inspiração fundamental dessa conduta é, sem dúvida alguma, a modéstia. Devido ao seu bom caráter, ao sucesso junto aos jovens e no seu empreendimento, não lhe faltavam motivos de ufanar-se. Certamente que um fundo de timidez, seu jeito campônio e a falta de cultura intelectual, de que tinha consciência dada à sua retidão de juízo, impediam-no de se superestimar. Pelo contrário, esforçava-se por se manter aquém de um justo limite. É típica a resposta que deu a um eclesiástico que se admirava do recato de seus acompanhantes: “São Irmãos que lecionam às crianças do meio rural… Alguns jovens se agruparam, compuseram um regulamento de acordo com seus objetivos, um coadjutor cuidou deles, Deus lhes abençoou os propósitos muito acima de qualquer expectativa humana”.24

Essa atitude poderia insinuar que era muito reservado em relação aos Irmãos. Nada disso. Muito pelo contrário. Apesar de seu caráter sacerdotal, empenhou-se totalmente na obra, vivendo entre os Irmãos como um deles, compartilhando completamente sua vida, mas sempre como o animador e organizador do empreendimento. Encontra assim a ocasião de dar o exemplo, em primeiro lugar da humildade que considera como a virtude fundamental, fazendo-a consistir primeiramente na transparência e na simplicidade. Todo fingimento e toda forma de vaidade são para ele idiotice indigna de um espírito racional. Reage vivamente perante uma fraseologia rebuscada, rebaixa a altivez dos que se vangloriam, mas suporta as leviandades, mesmo a seu desfavor. Perante as autoridades, sua atitude permanece natural, correndo o risco de parecer inexpressiva para os que olham apenas as aparências. Isso não o impedia de enfrentar quem quer que fosse para defender os Irmãos e seus interesses.

Sem dúvida, tal modo de proceder não correspondia ao seu caráter. As resoluções tomadas desde sua adolescência o ilustram suficientemente, e se os esforços da idade madura corrigem a natureza, não a apagam. Houve acontecimentos, cujo valor significativo pôde compreender graças ao seu juízo reto e à sua perspicácia. Acontecimentos que o levaram a tomar uma justa posição perante Deus. A chegada de um grupo de oito postulantes, após instantes súplicas para não “se apagar como uma lâmpada sem azeite”, a salvação de um perigo fatal no meio da neve, pela reza fervorosa do “Lembrai-vos”, o término da construção de l’Hermitage sem acidentes mortais, a feliz solução de dificuldades diversas que ameaçavam o futuro da congregação, são outros tantos fatos que lhe tornaram palpável a intervenção de Deus, por Maria, no estabelecimento da sociedade. Sua fé clarividente lhe faz aceitar o papel de instrumento em todo o empreendimento e, por isso, o incita a dedicar-se a ele com coragem sempre mais desinteressada. Não se cansava de dizer com a mais profunda convicção: “Jesus e Maria tudo fizeram entre nós”. Portanto, sabendo-se escolhido por Deus para completar aqui embaixo aquilo que “falta à Paixão de Cristo”, vê nisso toda a sua razão de ser e a realização de seu futuro. Por conseguinte, a única alternativa que sua personalidade lhe deixa é de se entregar sem reserva numa união sempre mais íntima com o Mestre, cuja única vontade é o móbil de sua atividade.

Com efeito, sua infatigável atividade deriva da repercussão – sobre seu caráter ativo, inflamado por um ardor apostólico fora do comum – da certeza de que somente em Deus ele pode se realizar. No seminário, tomando consciência da situação da Igreja e sobretudo da juventude, acredita perceber, através da intenção de seus companheiros desejosos de fundar uma sociedade marial, a voz de Deus dizer-lhe: “Precisamos de Irmãos”. Com sua maneira direta de não esperar para executar aquilo que acaba de ser decidido, logo que é nomeado coadjutor da paróquia, reúne alguns moços para fazê-los Irmãos.

No seu espírito, o fim que almeja é claro: “Precisamos de Irmãos que ensinem o catecismo, que ajudem os missionários e eduquem as crianças”.25 Mas que idéia se fazia ele então de um Irmão? Podemos ter como certo que tinha um conhecimento bastante claro dos Irmãos das Escolas Cristãs para servir-se deles como exemplo e para convencer-se da necessidade de supri-los nos lugares para eles inacessíveis. Seja como for, suas palavras e escritos fazem entrever o Irmão como um homem ardentemente desejoso de comunicar aos outros o amor do Cristo Salvador, de quem ele próprio se sentia imbuído até as últimas fibras do ser. Um homem ancorado na certeza de que a salvação da humanidade, tanto aqui embaixo como no além, só se encontra na adesão profunda e total ao Evangelho do amor divino.

Uma vez definido esse objetivo, resta fixar os meios para atingi-lo. São de duas espécies: o agente, de um lado, e o instrumento do outro.
O primeiro é o Irmão de quem já conhecemos a silhueta. O Padre Champagnat o quer consagrando sua pessoa e sua vida inteira à única missão de educar as crianças. Que ele esteja, por conseguinte, livre de qualquer outra ocupação, visando apenas a formar os jovens pelo seu exemplo, ensinando-lhes os elementos do saber e, mais ainda, a maneira de viver como “bons cristãos e virtuosos cidadãos”. Sabe que a tarefa não é fácil, tendo em vista que para isso deve estar sempre junto das crianças, demonstrar grande dedicação e profunda humildade, sabendo que exteriormente a função de mestre-escola das crianças não tem nada de glorioso. Além do mais, deve aceitar viver pobremente para permitir aos pais pouco afortunados que lhe confiem os filhos com menores custos. Para cumprir tal programa é preciso que o Irmão esteja animado espiritualmente por uma vida religiosa autêntica e sustentado socialmente por uma comunidade.

Quanto ao meio de que dispõe na primeira metade do século passado, como não fundamentar-se sobre a escola e a escola primária? Para prevenir a tentação de desígnios mais altos, o fundador não se cessa de insistir sobre o ensino do catecismo e sobre a humildade, dois pontos que, conforme ele próprio afirma, sonhava fossem os pilares do edifício espiritual de toda a sua vida. “Não posso ver uma criança sem me dar vontade de ensinar-lhe o catecismo”26, dizia com saudade.

Os acontecimentos levaram-no para um plano superior, por assim dizer. Em vez de agir por si mesmo, teve que aceitar de ser multiplicador de forças, formando professores, como também organizador, preparando-lhes os campos de ação. Nem por isso sua atividade foi aligeirada; pelo contrário, nisso consumirá todas as suas forças. Uma carta que escreveu em maio de 1827 ao P. Barou, vigário-geral de Lião, dá disso uma idéia: “Vai aqui em poucas palavras a minha posição… Estimo que até o fim de agosto seremos mais de oitenta… Lá pela festa de Todos os Santos, teremos 16 estabelecimentos, e eu teria necessidade absoluta de visitá-los, pelo menos cada dois ou três meses, para saber em que pé estão as coisas… também combinar com os párocos e os prefeitos a respeito do que nos deve ser pago… Nem lhe falo da contabilidade a manter, da correspondência a pôr em dia, das compras a fazer, das dívidas a pagar ou cobrar, de tudo aquilo que diz respeito aos interesses espirituais e materiais da casa. Todos estão de acordo que é de suma importância a formação da juventude. Portanto, importa que aqueles que estão trabalhando nessa excelente missão sejam formados e não fiquem relegados à própria sorte, uma vez enviados”.27 Embora a diocese o ajude, levando em conta seus apelos discretos, nem por isso o trabalho diminui, pois a obra não pára de crescer.

Ela constitui de tal modo sua ocupação, que lhe dedica todo o seu tempo, acima de todo interesse pessoal, para obedecer à vontade de Deus, convicto de cumpri-la justamente no estabelecimento dessa obra. Tudo quanto lhe consagra – e é a totalidade de seus recursos físicos e espirituais, seu tempo, seu cansaço e suas penas – tem, portanto, unicamente Deus por fim.

Também sua vida espiritual não é senão uma relação sempre mais íntima com Cristo, de quem se considera o servidor, ou o instrumento para fazer desabrochar no coração das crianças os frutos de sua Redenção. Na medida em que se imprime no espírito de M. Champagnat a certeza de estar sob a iniciativa de Deus, sua atividade interior para com Ele torna-se mais simples, mais confiante e mais familiar. Sente-se como o colaborador e o companheiro de Jesus, compartilhando o mesmo trabalho com um amor semelhante.

Por isso só pode sentir-se ainda mais próximo de Maria. A devoção antes sentimental, inculcada desde a infância pela mãe e pela tia religiosa, vai assumir nele, pelo impacto dos fatos acima mencionados, o caráter mais concreto de uma presença atuando permanentemente junto a si. As denominações de “Boa Mãe” e “Recurso Habitual” lhe são costumeiras, pois expressam as aquisições de sua própria experiência. Talvez possa surpreender a familiaridade com que a trata. “Procurem fazer com que Maria se interesse em seu favor. Digam a Ela que, depois que vocês tiverem feito todo o possível, pior para Ela se as coisas não andarem direito”,28 recomendava ao Ir. Antônio, mostrando desse modo que era assim que ele agia. Não duvidava absolutamente que Maria lhe retribuiria largamente o amor que lhe devotava, o que lhe fez escrever a Dom Pampallier, em maio de 1938: “Maria mostra visivelmente sua proteção sobre l’Hermitage. Como tem força o santo nome de Maria! Quão felizes somos de nos termos ornamentado com ele!. Há muito tempo que não se falaria mais de nossa Sociedade sem esse nome milagroso! Maria, está aí toda a riqueza (“ressource”) de nossa Sociedade”.29 É Ela, tem certeza, a inspiradora de suas iniciativas e o recurso garantido nas dificuldades que parecem intransponíveis à primeira vista. É Ela, a Serva do Senhor, seu modelo perfeito, pois seguindo-a, é o Senhor que servimos.

Por Ela, portanto, ei-lo mais empenhado no serviço de Jesus. Embora mais viris e respeitosos, não são menos afetuosos os sentimentos para com Jesus. O exercício preferido da presença de Deus, mantinha-o em contato por assim dizer contínuo com Jesus, seja no seu escritório, seja em seus numerosos deslocamentos. Por que então recear ou se preocupar com o julgamento alheio? O Padre Maitrepierre enganou-se ao dizer dele: “O Padre Champagnat tinha, efetivamente, tudo o que era necessário humanamente para impedir o sucesso de seu empreendimento”.30 Champagnat fez com que todas as suas qualidades humanas como que contribuíssem para devolver a Deus aquilo que recebeu da natureza e os dons da graça em acréscimo. Bem mais justo é o testemunho de um pároco da diocese, ao dizer: “Deus o escolheu e lhe disse: “Champagnat faz isso. – Champagnat o fez…”.31

Esse empenho de toda a sua pessoa na obra redentora do Cristo, numa liberdade de abandono total, em que a confiança afastava qualquer temor, levou-o a uma união quase sensível com a divindade. “Quando oferecia o santo sacrifício da missa – testemunha o Ir. Silvestre – dir-se-ia… que via sensivelmente Nosso Senhor e lhe falava”.32 O Irmão coloca esse sentimento da presença de Deus na conta da intensidade de sua fé. Mas convém ver aí também o resultado da amorosa relação, da total colaboração, durante toda a sua vida, com a ação divina, o que plenificava sua pessoa com a satisfação de ter cumprido sua
missão.

Conclusão

Tal é o resultado dessa vida em cujo esboço apresentei alguns traços somente para ilustrar como, através de uma atividade transbordante, tendia para o único objetivo de fazer conhecer o amor que Deus nos tem e nos convencer de que o único meio válido para desabrocharmos e provar a verdadeira felicidade é responder a esse amor com o nosso. Deus capacitou-o, mas somente daquilo que era necessário, para, em primeiro lugar, conhecer e depois realizar a vocação que Deus lhe propunha. Faltavam-lhe muitas coisas para realizar um brilhante caminho de glória; contentou-se em trilhá-lo na obscuridade. Foi sua sorte, pois podia concretizar todas as virtualidades latentes de sua rica natureza, abandonando-se, quanto ao mais, ao socorro do alto, unindo-se o mais possível Àquele de quem procede o ser e o devir.

Realizar a obra de Deus até o esgotamento de todas as capacidades de que se dispõe, outra coisa não é que doar-se totalmente para identificar-se com Deus. É realizar-se a si mesmo, perfazer sua personalidade até à mais completa estatura, realizar seu devir e satisfazer plenamente sua mais profunda aspiração. Nisso consiste a beatitude a que toda pessoa humana está destinada.

Traduziu: Ir. Adelino Martins, Província de Porto Alegre.

Notas

1 Pratique de la Perfection chrétienne et religieuse, edição francesa de 1852, em 3 volumes, vol. I, p. 434.
2 bid., p. 13
3 Erich Fromm, Ihr werdet sein wie Gott (Sereis como Deus), col. Rororo, Reinbeck bei Hamburg, maio 1980.
4 Pratique de la Perfection chrétienne et religieuse, vol. I, p. 2.
5 Luís LAVEILLE, Les Puissances du moi, Flammarion, editor, 1948, p. 68.
6 op. cit., p. 20.
7 ibid., pp. 13-14.
8 ibid., p. 93.
9 ibid., p. 93.
10 ibid., p. 12.
11 ibid., p. 95.
12 Luís Lavelle, L’erreur de Narcise, ediç. B. Grasset, Paris, 1939, pp. 7-8 passim.
13 ibid., p. 19.
14 Fl 3, 13-14.
15 op. cit., p. 32.
16 Rodríguez, Pratique de la Perfection, vol. I, pp. 128-129.
17 Avis, Leçons, Sentences, ediç. 1868, p. 236.
18 cf. Henri Bergson, L’intuition philosophique, conferência feita no Congresso de filosofia de Bolonha, no dia 10 de abril de 1911, pp.118-123, transcrito em “La Pensée et le mouvement, essais et conférence”, pp. 118-123.
19 Emmanuel Mounier, Traité du caractère, éd. Deu Seuil, Paris, 1947, p.184 passim.
20 OME, doc.164 (752), no 56, p. 417.
21 Vida, 1980, p. 72.
22 Irmão Silvestre narra o P. Champagnat, Roma, 1992, p. 112.
23 Vida, 1989, p. 474.
24 Vida, 1989, p. 373.
25 Vida, 1989, p. 28.
26 Vida, 1989, p. 460.
27 Cartas de Marcelino Champagnat, 1997, doc. 7, pp. 35-36.
28 Ibid. doc. 20, p. 61.
29 Ibid. doc. 194, p. 411.
30 O.M.E.(xtraits). doc. 162 (701), p. 396.
31 Ibid. doc. 162 (701), p. 396.
32 Ir. Silvestre narra M. Champagnat, p. 276.

Edição: Cadernos maristas, numero 14, novembro 1998, pag. 85-104

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