Maria na vida de Marcelino Champagnat

Paul Sester

1996-01-08

MaryNão faltam estudos sobre a devoção marial de M. Champagnat, embora se possa perguntar se é útil acrescentar outros para repetir as mesmas coisas.
Entretanto, o mesmo assunto pode ser tratado de maneiras muito diferentes se o encaramos de pontos de vista diversos que, ao se completarem mutuamente, conseguem a apanhá-lo melhor.

Assim o presente estudo, em vez de tratar daquilo que se entende comumente por devoção, tenta captar as relações íntimas do Fundador dos Irmãos Maristas com aquela que denominava ordinariamente a "Boa Mãe" .

A perspectiva será, portanto, preferencialmente psicológica. A empresa é arriscada, porque M. Champagnat, praticamente nada revelou de sua vida interior, mas confrontando os documentos, seja entre si, seja com as circunstâncias que os provocaram, aparecem algumas indicações. Longo convívio com a personagem para pesquisas em diferentes domínios permite compreender, através do emprego das palavras, mais do que elas dizem.

É preciso levar em conta a evolução, porque certamente as relações do Fundador com Maria não eram as mesmas no começo de seu ministério como no fim de sua vida. Essa evolução fez-se graças aos acontecimentos, principalmente os mais dolorosos, sobrevindos ao longo de sua carreira. Não se trata de transformação, mas de aprofundamento dos elementos recebidos pela formação, de interiorização de práticas exteriores, mais ou menos formalistas, para uma intimidade das mais profundas.

Devoções exteriores

As práticas exteriores, sobre as quais seu biógrafo e muitos outros depois dele longamente se estenderam, são todas as práticas de devoção que ele mesmo prescreveu para si e para seus discípulos. Essas práticas nada têm de original. São reminiscências da devoção popular praticada na família ou na paróquia natal, de um lado, e de outro daquilo que o regulamento do seminário propunha. Por exemplo, num seminário sulpiciano "nenhum exercício começa sem sua invocação e quase todos terminam pelo Sub tuum praesidium. Cada dia se recita, em comunidade, o terço para honrara Maria nos seus diversos mistérios; celebra-se suas festas com a maior solenidade possível… O mês de maio especialmente consagrado". (J.H. Icard, Traditions du séminaire de Saint-Sulpice, p. 266.) E como pensar que M. Champagnat não conhecesse a vida de M. Olier, que, como seminarista consciencioso, não tenha procurado tomar o fundador dos seminários sulpicianos por modelo? Ora este considerava "a Santa Virgem como inspiradora, a única verdadeira superiora e sustentáculo do seminário de Saint-Sulpice". (Ibid. p. 265.)

É com esse material que M. Champagnat alicerça definitivamente sua vida marial. Não busquemos alhures a inspiração de certas práticas, até de certas idéias que mais tarde proporá a seus Irmãos, como a Salve Regina da tarde, à semelhança dos monges, e a da manhã que se tornará depressa uma tradição, mesmo se pode dar a impressão de roubar a deus as primícias do dia.
O exercício das novenas, cuja grande maioria se dirige a Maria, ocupa incontestavelmente lugar importante na devoção do Fundador. Sem dúvida que nas paróquias, nessa época recorria-se freqüentem ente a isso; entretanto o número de vezes que as prescrevia testemunha seu fervor pessoal e seu cuidado de facilitar a prática da devoção marial para pessoas simples e geralmente muito ocupadas. Mais que orações longas e eruditas, essas pessoas necessitam de fórmulas simples, que se retêm facilmente, portanto, sempre ao alcance quando o coração está atormentado por alguma pena.
Isso quer dizer que, para ele, aí estão manifestações exteriores de uma atitude mais profunda, onde a confiança em Maria se vive na simplicidade, na familiaridade, como a de um filho diante da mãe.

Presença de Maria

Sem dúvida nenhuma, M. Champagnat vivia uma devoção marial dessa natureza. Basta percorrer suas cartas para nos darmos conta da familiaridade de suas relações com Maria.

A carta de 20 de julho de 1839 (doe. 259) dá o tom geral: "Se podemos falar a Jesus, o que é que não temos direito de dizer a Maria?… Diga, pois, a Maria que a honra da sua sociedade exige que ela o conserve casto como um anjo". Deve-se notar que o autor está a menos de um ano da morte e que se dirige a um de seus jovens Irmãos assaltado pela tentação. Certamente, oito anos antes, a 4 de fevereiro de 1831, para encorajar o Ir. Antoine, serve-se de uma expressão quase chocante: "Depois que tiverem feito o possível, digam a Maria que é "tanto pior para Ela se as coisas dela não andam". Estão no mesmo tom estas expressões: "Nossa Boa Mãe", "Nossa Mãe comum", tantas vezes repetidas em suas cartas. Diante de Maria, nenhum constrangimento entrava suas relações. E mais se sente próximo dela, mais a sente presente como uma pessoa viva.

Porque isso não é uma presença à espera de honras e louvores, é uma presença que age, mas não aquela que vem oferecer presentes, deslumbrar com fenômenos sensacionais ou com milagres, uma presença pelo contrário que propõe sua colaboração, que não dispensa de agir, de pôr tudo em ação pessoalmente para alcançar bom êxito e implorar auxílio. "Maria, nossa Mãe comum, ajudá-lo-á", promete ao Irmão Antoine a respeito do Ir. Moyse. E quando se debate em Paris para obter do Governo a autorização legal de sua empresa, escreve: "Com o auxílio de Maria, removeremos céu e terra…". (Ao Ir. François, 20 de maio de 1838, L.P.c., p. 390.)

Essa frase não deve, entretanto, fazer supor que considera Maria como a seu serviço. Pelo contrário, o papel dele é servir, estar ao serviço dela, de não ser outra coisa que seu servidor. "Sabeis que sou vosso escravo" (Vida, p. 18), protesta a Maria em suas resoluções de 1815. Sem dúvida, não é a espiritualidade de Grignion de Montfort, cujo "Tratado da verdadeira devoção" ainda não tinha sido publicado, que o pôs nessa via, mas certamente a formação do Seminário Maior, dirigido pelo sulpiciano Gardette. Com efeito, como pensar que M. Champagnat não conhecesse a vida de M. Olier, que, como fervoroso discípulo não visasse ao ideal que o fundador dos seminários sulpicianos representava para ele? Ora M. Olier considerava "a santa Virgem como a inspiradora, a única verdadeira superiora e sustentáculo do seminário de Saint-Sulpice". (J.H. Icard, op. cit., p. 255.) Sabe-se, com efeito, que M. Olier pretendia que o projeto do seminário, da construção de que se sentiu encarregado, lhe foi inspirada pela santa Virgem.
Desde então considerava esse edifício como "a obra de Maria" a qual deveria ser, portanto, "a conselheira, a presidenta, a tesoureira, a rainha e tudo o mais" (ibid., p. 265).

Assim quando o construtor da casa de N.S.a de lHermitage fala sem cessar da "Obra de Maria", a palavra não ressoa como um eco daquele do grande sulpiciano? A nuança objetiva que separa uma obra material de uma orgânica é aqui mais aparente que real, porque na palavra "obra" M. Olier compreende não apenas o edifício, mas também a vida cuja estrutura deve facilitar o desenvolvimento regular. Por conseguinte, tanto de um lado como de outro, evoca-se a ação concreta de Maria entre seus fiéis. .

Essa ação o P. Champagnat a tem por certa, visto a insistência com que dela fala. Além das 5 cartas em que a palavra "obra» aparece 9 vezes sozinha (3 vezes no doc. 6; 2 vezes no doc. 11; 2 vezes no doc. 44; 45A e 45B), 3 outras contêm a expressão mais explícita: "Obra de Maria". A palavra designa na maioria das vezes a Sociedade de Maria no seu conjunto. Quando M.
Champagnat diz que o P. Courveille poderia ter causado a ruína da "obra se a divina Maria não a sustentasse com toda a força de seu braço" (doe. 30, p. 84), é realmente da Sociedade de Maria que fala. Será preciso deduzir que exclui a congregação dos Irmãos, como poderia deixar entender esta frase que escreve ao P. Cattet (doe. 11, p. 46): "A sociedade dos irmãos não pode positivamente ser considerada como a obra de Maria, mas somente como um ramo posterior à própria sociedade"? Querendo precisar bem que sua intervenção concerne aqui a sua atividade em favor dos Padres e não daquela dos irmãos que não apresenta nenhuma dificuldade desse gênero, ele não quer dizer que nesta última Maria não tenha intervindo, mas substitui infelizmente a palavra "obra de Maria" por "Sociedade de Maria". Na carta de agradecimento ao P. Dumas, cura de St. Martin-la-Sauveté, pelo envio de um postulante, seu pensamento não apresenta nenhum equivoco: "Agradeço-lhe ao mesmo tempo escreve – o interesse que toma pela obra de Maria". (Doc. 142, p. 282,) Mais explícita ainda é esta frase da carta ao Irmão Hilarion: "Digamos a Maria que é muito melhor sua obra que a nossa". (Doc. 181, p. 368.)

Essa afirmação merece, ademais, uma atenção especial: ela distingue a atividade do homem da de Maria. Postas em paralelo, as duas atividades visam à mesma obra e de fato estão subordinadas uma a outra como sugere a frase anterior: "Esperemos fortemente e rezemos sem cessar; o que é que não obtém a oração fervorosa e perseverante!". É preciso concluir, portanto, que na ocorrência M. Champagnat secunda os desígnios de Maria. Essa idéia de ser o instrumento de que Maria se serve para realizar sua obra é uma convicção fortemente consolidada no seu coração. Ela não data dessa época (1838), mas remonta à concepção mesma da Sociedade de Maria, cujo projeto teria nascido de uma· inspiração que o P. Courveille teve na basílica do Puy. Quando, sobre a insistência de M. Champagnat em querer acrescentar-lhe um ramo de Irmãos, o grupo lhe respondeu que se encarregasse disso, M. Champagnat recebeu essa proposição como uma missão do céu. Se seus companheiros podem em seguida ter dúvidas sobre o êxito, visto seus meios limitados, ele, em compensação, reconhecendo sua indigência, volta-se para Deus, pondo-se ao seu serviço: "Eis-me aqui, Senhor, para cumprir vossa divina vontade". (Vida, p. 55.) Nessa relação Maria não está ausente. M. Champagnat, embora nunca o explicite, parece conferir-lhe o papel de intermediária entre o homem e Deus, como se pode deduzi-Io desta frase dirigida a seu primeiro recrutado: "Coragem! Deus o abençoará e a Santíssima Virgem vai trazer-lhe colegas". (Ibid. p. 57.)

Esse papel que atribui a Maria de ser a verdadeira empreendedora da obra, sem dúvida só existia, então, em nível de espírito. Bem cedo acontecimentos o imprimirão em todo o seu ser e seu agir como certeza inabalável. Foi primeiramente, após muitas orações e novenas, a chegada de 8 postulantes que acreditava enviados por Maria. "Não ouso recusar aqueles que se apresentam, considero-os trazidos por Maria mesma", escreverá mais tarde a Dom De Pins. (doc. 56, p. 140.) Depois foi a construção da casa de lHermitage, concluída sem acidentes pessoais nem bloqueios financeiros. Foi também quando, numa tarde de inverno, por um ato temerário de sua parte, se expôs ao perigo de perecer na neve e que, depois de fervorosa oração, Maria o salva da morte e preserva sua congregação de uma ruína certa. Foi ainda, em duas ocasiões pelo menos, a suspensão das ameaças de supressão da congregação manejadas pela administração diocesana. Enfim o êxito da empresa onde a temeridade zombava da prudência humana, embora muito justificada, visto a fraqueza dos meios utilizados. "Que maior milagre pode haver,… do que Deus ter-se servido de semelhantes homens para começar essa obra? Eis aí, a meu ver, um prodígio que prova decisivamente que essa comunidade é obra sua." (Vida, p. 374.

Não se deve taxar essas palavras de literatura piedosa, assim como não se deve colocá-las na conta de um ato deliberado de humildade, porque as sentimos carregadas da lembrança de acontecimentos passados, de provas vindas de toda a parte pelos quais a obra só pôde passar sem perigos graça à intervenção do céu. A conseqüência lógica a tirar dessa constatação é a confiança total em Maria, o reflexo de recorrer a ela em toda ocasião, a insistência em recomendar de fazer o mesmo para as menores coisas. Vai até mais longe, chega colocar nos braços de Maria a obra inteira, sua atividade de todos os instantes, até sua pessoa, contentando-se de servir-lhe de instrumento. Daí sua conclusão expressa no leito de morte: "A gente é apenas um instrumento, ou melhor, não é nada; Deus é quem faz tudo". (Vida, p. 214.) Deus, entretanto, segundo a crença contínua de M. Champagnat, quer passar por Maria; eis por que, de uma frase que pediu emprestada e que impregnou fortemente de seu pensamento pessoal, fará sua divisa: "Tudo a Jesus por Maria, tudo a Maria para Jesus”.

Imitação de Maria

Não está nisso, porém, a totalidade de sua relação marial. Se a obra está nas mãos de Maria, o instrumento de que Ela se vale só poderá servir com toda a eficácia se se adaptar a Ela o melhor possível. Certamente não foi com esse raciocínio que M. Champagnat concebeu a necessidade de imitar Maria. Muito antes dele, numerosos autores espirituais recomendaram essa prática. Entretanto, não é impensável que, intuitivamente, suas freqüentes relações com Maria tenham justificado e fortificado suas convicções sobre esse ponto.

Reunindo as diferentes palavras do Fundador, pode-se, sem aprofundar os textos, mas procurando sentir-Ihes a ressonância interior, perceber algo de sua personalidade. É assim que descubro um homem sempre mais consciente de seus limites, engajado numa aventura que exorbita suas capacidades naturais, mas cujo êxito é certo, graças a circunstâncias estranhas a ele.
na sinceridade de sua consciência deve atribuir a glória não a si mesmo, mas Àquela a quem sempre solicitou socorro e seguiu o mais perfeitamente possível as inspirações. Que mais poderá, então, fazer senão confiar-lhe inteiramente sua pessoa por um serviço sempre mais desinteressado. Dessa maneira, ele, servidor, se encontra na mesma posição que Ela, Serva do Senhor. Sua razão de ser, como a da Virgem da Anunciação, não é outra que a de ser instrumento de que Deus quer servir-se para completar o que falta à obra da redenção (cf. CI1,24).

Desde então Maria se lhe apresenta ainda sob outra claridade: a de modelo, de luz a balizar sua estrada. Também o tema da imitação retoma freqüentemente, como se sabe, nas suas exortações. É outro aspecto de sua devoção marial particularmente apreciado como condição de eficácia do gênero de apostolado próprio de sua congregação.

Essa maneira de apresentar a imitação de Maria, como aliás toda a devoção marial de M. Champagnat não está plenamente de acordo com seu biógrafo, o Ir. João Batista. Segundo ele, o Fundador teria considerado a imitação de Maria como "o complemento das homenagens tributadas a Maria", como algo "que se deve acrescentar a todas essas práticas instituídas na Congregação para honrar a Mãe do Senhor". (Vida, p. 318.) A discordância está, primeiramente, na definição da palavra "devoção".
Se acreditarmos em São Francisco de Sales: "a devoção não acrescenta nada, por assim dizer, ao fogo da caridade, a não ser a chama que torna a caridade pronta, ativa e diligente…" (Introdução à vida devota, final do capo L) Tratase, portanto, de uma diligência que se traduz por práticas: homenagens, orações. É é bem nesse sentido que vai a compreensão do Ir. João Batista. Em compensação, aqui, a palavra deve ser entendida num sentido mais amplo, designando o lugar ocupado por Maria na vida de M. Champagnat.

Por outro lado, para evitar a censura de sentimentalismo é preferível considerar a devoção em seu lado positivo, um meio que podemos utilizar para consolidar a relação que nos deve unir a Deus, único objetivo, em suma, de toda espiritualidade. A devoção toma então preferencialmente o sentido de devotamento, designando o fato de se votar a algo ou a alguém para sair de si mesmo e alcançar Deus, o único a fazer crescer todo ser que vem dele. Cantar os louvores de Maria, protestar-lhe amor platônico, esperando passivamente seu socorro é, sem dúvida, coisa excelente, mas melhor ainda é viver na sua intimidade para chegar mais facilmente à de seu Filho.

Em terceiro lugar, se o Ir. João Batista descreve a devoção, por assim dizer, do exterior, o presente estudo procura tomá-Ia sobretudo do interior, apelando para a psicologia. Ora, nesse domínio toda separação é apenas teórica. Por isso, separar a imitação da devoção não corresponde à realidade.. Portanto, visto sob esse ângulo, o desacordo está apenas na maneira de considerar as coisas.

Nesse mesmo parágrafo, o biógrafo indica aquilo sobre que, segundo o Fundador, os Irmãos devem aplicar a imitação. Em primeiro lugar, cita globalmente as virtudes de Maria, depois precisa: "que o amor dos Irmãos a Maria os leve sobretudo a assumir o seu espírito e a imitar sua humildade, modéstia, pureza e amor a Jesus Cristo". Sem se deter sobre o fato que "o espírito" não é uma virtude, nem sobre o lugar que dá a cada uma, é mais lógico começar pelo amor de Jesus, insistir sobre a humildade para terminar depois sobre o espírito.

A imitação do amor de Maria e da Educadora de Jesus impõe-se aos Irmãos por duas razões: porque esse amor é a fonte de toda vida espiritual e o meio necessário para cumprir eficazmente sua tarefa apostólica. "Amar a Deus – dizia o P. Champagnat – amar a Deus e trabalhar para torná-lo conhecido e amado, eis qual deve ser a vida de um Irmão". (Vida, p. 458.) Alhures lê-se ainda: "Para bem educar as crianças é preciso amá-las e amá-las…". (Ibid., 9.501.) Essas duas citações podem vir depois da frase que o Fundador faz seguir à primeira: "Com essas palavras, sem querer, caracterizou-se a si mesmo e resumiu toda a sua vida". (Ibid., p. 502.) De fato, manifesta esse mesmo amor para com seus Irmãos. Ama-os de um amor semelhante àquele com que Maria os envolve inspirando-lhes o engajamento na sua Sociedade. Não há dúvida nenhuma de que está de acordo com a Mãe de Jesus, cujo exemplo de "educar e servir o santo Menino Jesus" prescreve que os Irmãos sigam. (Regras Comuns, 1852, p. 16.) Além de seu amor maternal, ele pensa aqui mais ainda no amor que Ela devotava ao Redentor. Dessa maneira ele amava nos seus Irmãos os operários que" a Santíssima Virgem plantou no seu jardim" (Doe. 10, p. 45., para serem preparados à sua missão. Portanto, esse amor, a exemplo daquele de Maria por seu Filho, era cheio de respeito para com a personalidade de cada um, como o demonstra a confiança que sabe depositar neles.

Dessa maneira suscitou na comunidade de lHermitage esse espírito, considerado marial, de abertura, simplicidade, franqueza nas relações e de serena familiaridade, convencido que assim era a atmosfera da Sagrada Família. Quando repreende seus noviços devido aos recreios muito barulhentos, lembra-lhes que a "Virgem Santa mostrava-se sempre modesta e recolhida até mesmo nos lazeres, aliás necessários à natureza". (Vida, p. 67.)

Mas a virtude que mais tinha a peito e pela qual queria ser mais conforme a Maria é, incontestavelmente, a humildade. A importância desse ponto merece um exame mais aprofundado da maneira como nosso Fundador me parece tê-la compreendido e praticado.

No exemplo da Serva do Senhor, certamente não encontrava nada desse ar afetado, miserável que os autores espirituais da época inspiram. A humildade prática, tanto em Belém quanto em Nazaré, devia ser primeiramente de abertura, verdade, simplicidade. Maria, plenamente consciente do papel que lhe competia desempenhar, que não escolheu, mas aceitou por amor ao Senhor, mantinha-se na posição que lhe cabia, sem se julgar nem superior nem inferior. Deus derruba os soberbos; levanta os humilhados (cf. Magnífcat). Deus lhe pede uma contribuição especial na obra da redenção conforme as modalidades que as circunstâncias lhe revelarão. Ela se conforma a isso com todo seu ser, atenta ao menor sinal: "Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração" (Lc 2,19). Sempre submissa, inclina-se diante do adolescente que "deve estar na casa de seu Pai" (cf. ido 2,49); perante o Filho maior que não age senão na "sua hora" (cf. Jo 2,4); no cenáculo, diante dos apóstolos escolhidos pelo Salvador. Mas Ela não é inativa, participa do drama que cela a salvação do mundo, vai à "sala superior" onde estão os apóstolos para receber o EspíritoSanto (cf. At 1,13-14: 2,1-4)

Na "Vida de M. Champagnat", o Ir. João Batista escreve: "Como a Virgem Maria, modelo de todas as virtudes, brilhou sobretudo pela humildade e como a função de educador da infância é, de per si, um ofício humilde, quis que a humildade, a simplicidade e a modéstia fossem o caráter específico do Instituto” (p. 374). Depois o autor encarece, mediante uma enumeração que contém mais literatura que realidade: "A primeira lição" que ensinava aos postulantes "era sobre a humildade"; "o primeiro livro que lhes punha nas mãos era o Livro de Ouro ou Tratado sobre a humildade"; "o orgulho era o primeiro vício que procurava erradicar…". Isso, entretanto, não deve deixar-nos pensar que antes dessa virtude o Fundador não pusesse o pressuposto do amor de Deus. Numa oração que acompanha suas resoluções, lemos: "Derrubai em mim o trono do orgulho, não apenas porque é insuportável aos homens, mas porque desagrada a vossa santidade" (O.M.E., doc. 6(17), p. 38). Disso pode-se concluir, portanto, que para ele a humildade começa pela acolhida de Deus que faz, espontaneamente, tomar o lugar de criatura perante o Criador, com tudo quanto isso comporta. Conhecemos depois seu desprezo por toda forma de pretensão, de jactância tola e ridícula. É preciso aceitar-se como se é – parece dizer – reconhecendo na oração acima: "Senhor, confesso que não me conheço". Nunca, quando louvado, manifestou alguma pretensão; nunca, nas humilhações, sua dignidade cedeu. Sem dúvida, interiormente, isso não passava sem combate, se cremos nas suas resoluções que, apesar de tudo, não conseguiam suprimir a natureza. Entretanto, tímido por caráter, não lhe custava apagar-se, sem abandonar, contudo, as exigências de sua função que o tornavam capaz de resistir ao bispo como também ao prefeito. Sabendo-se chamado a ocupar-se da gente simples e dos pobres, sabia manter-se em seu nível, respeitando as pessoas e ensinandolhes a reconhecer seus verdadeiro valor, independentemente da condição social.

Esse procedimento de M. Champagnat pode parecer natural; com efeito, somente a afeição pela humilde Serva do Senhor lhe possibilita isso, como de colocar sua ambição no crescimento espiritual, bebendo na fonte de todo ser e não em qualquer promoção no aspecto do ter. Ademais, nesse campo estava preservado pela pobreza a que não quis renunciar, pela modéstia de sua condição social, familiar e pessoal aceita sem amargura nem pesar, pela confiança enfim que lhe permite nada recear e tudo conseguir (d. Vida, II parte, capo 3).

Espírito de Maria

A perfeição da humildade, pelo menos avaliada segundo o exemplo de Maria, talvez se encontre menos numa grande humilhação espetacular do que na maneira totalmente doce, serena e discreta, igual e natural com que a praticou. Pode-se então falar de espírito, até de espírito de Maria quando a razão regula o jogo do amor e da humildade.

O espírito – diz o dicionário – é "o conjunto das disposições, das maneiras de agir habituais" (Petit Robert, p. 619, col. 2). Aplicando-a a Maria, essa definição pode sugerir como características: uma abandono total, mas tranqüilo e confiante, na certeza evidente do amor indefectível da parte de Deus, talmente desejoso do desabrochamento de cada pessoa; um apego recíproco que impele a servir até o esgotamento de suas possibilidades, sem nada reter para si mesmo; uma serenidade, fruto de felicidade inalterável, em que as penas mais cruéis desaparecem; um respeito cheio de reconhecimento para toda criatura saída das mãos pródigas do Criador; uma submissão alegre à vontade do Senhor que governa todas as coisas com amor.

Arquétipo do gênero humano, Maria aparece como pessoa cujo agir, coração e todo o ser pertencem a Deus, deixando-lhe até mesmo o cuidado de seus próprios interesses como de sua realização. Por conseguinte, longe de usurpar o lugar ou a categoria de outra pessoa, Ela só cuida do verdadeiro bem de seus semelhantes, conforme a particularidade de cada um, porque nisso está a glória do único Criador. Ela é, portanto, o puro inimigo do mal no seu sentido mais essencial de destruição do ser.

Sem representar-se a imagem de Maria nesses traços, nem sob esse ângulo, pode-se dizer que, intuitivamente, M. Champagnat a compreendia nesse sentido, procurando imitá-la. Embora por um caminho diferente, as idéias-força que seu biógrafo colhe de sua vida são bem as de abandono total a Deus, do cuidado de abrir a todo ser humano o caminho da salvação, de persuadi-lo a empenhar-se nessa via, desaparecendo depois humildemente par não estorvar a liberdade da decisão. M. Champagnat testemunha pessoalmente em suas cartas devotamento completo à sua obra e amor desinteressado para seus Irmãos. "Não há nenhum sacrifício – afirma – que não esteja pronto a fazer para essa obra" (L. 44, p. 119). Nas horas mais desesperadas, sua reação não é abandonar seus Irmãos, mas "compartilhar de todos os seu infortúnios, partilhando o último pedaço de pão" (L. 30, p. 84). O alvo que visa, a exemplo de Maria, é a beatitude celeste: "Rogo à nossa Mãe comum d nos obter morte santa, para que, tendo nos amado mutuamente na terra, no amemos para sempre no céu" (L. 79, p. 191). Será possível dizer mais do isto "Cada um deve esforçar-se de tal modo para assemelhar-se a ela, que tudo er suas ações e na sua pessoa relembre Maria, retrate o espírito e as virtudes d Maria" (Vida, p. 318.)

Nada mais, a não ser esse espírito, pôde criar na ,casa de lHermitage essa atmosfera familiar, feita de franqueza e de simplicidade, de afeição mútua sincera e viril, de confiança e segurança tranqüila, enfim de alegria simples e de ambição comedida. É realmente isso que se pode ler nas linhas entusiastas verdadeiro hino de louvor a Maria, contidas na carta a Dom Pompalier, a 27 de maio de 1838: "Maria mostra bem visivelmente sua proteção a respeito de lHermitage. Oh! como o santo nome de Maria tem força! Como somos felizes de sermos adornados por ele. Há muito tempo não se falaria de nossa sociedade sem esse santo nome, sem esse nome milagroso. Maria, eis todo o recurso de nossa sociedade" (L. 194, p. 393). Quem é que não compreende que sob o "nome" o autor designa a pessoa, e que a expressão: "nous en être parés" significa: estarmos sob sua direção? Essas flores de retórica exprimem, além de sua alegria, sua gratidão e seu amor, e dizem quanto a Mãe de Deus enche sua existência e quanto deseja ardentemente que ela mantenha sempre o mesmo lugar entre os que continuam sua obra.

Edição: Cadernos maristas n. 8 janeiro 1996 p. 29 - 38

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