Maristas Azuis de Alepo
Vocês esperavam a nossa carta.
Além das notícias sobre os diferentes projetos dos Maristas Azuis, vocês desejam obter informações sobre a situação da cidade de Alepo, Afrín e especialmente o que está acontecendo em Damasco e no resto do país. Alepo foi libertada em dezembro de 2016, desde então, os bombardeios cessaram, reabriram as estradas cortadas, o abastecimento de água chega com bastante regularidade para todas as famílias e a eletricidade continua sendo racionada. Há pessoas que se mudaram para o interior, e que estão tentando retornar para suas casas nos bairros orientais da cidade. Os pequenos comerciantes vão abrindo seus negócios. Em alguns bairros já removeram todos os escombros. E agora é quando vemos a desolação que viveu o povo sob a pressão de membros armados, como do "Frente Al Nosra" ou do "Daesh” islâmico .
A situação de Alepo aproxima-se da normalidade
Colégios e universidades funcionam normalmente. A situação de Alepo aproxima-se da normalidade, se não fosse pela situação econômica que é catastrófica e o retorno definitivo das pessoas deslocadas para o exterior. Infelizmente, para milhares de famílias que emigraram, o retorno não aparece como uma prioridade em suas agendas. Enquanto vocês leem esta carta, há famílias que ainda estão partindo. É preciso esperar que a guerra acabe em toda a Síria? Que futuro nos espera? Vários focos bélicos continuam mantidos no país…
Eu gostaria de chamar a atenção para a situação de Afrín, uma cidade do noroeste da Síria, povoada principalmente por curdos, e faz fronteira com a Turquia. Há alguns meses, o presidente Turco declarou guerra aos curdos: o exército invadiu o território sírio com ataques aéreos letais e uma ofensiva por terra. Agora ocupam cerca de cem aldeias ao redor de Afrín, que esteve sob cerco. Não podemos esquecer que este território é parte da província de Alepo e que os habitantes desta região, embora de etnia curda, são cidadãos sírios.
Guerra em Damasco
Em Damasco, a situação é muito grave. Há vários anos, indivíduos armados do "Frente Al Nosra", com outras milícias, ocupam toda a área de Damasco chamada La Ghuta. Estes Jihadistas não param de bombardear os subúrbios de Damasco, matam civis e destroem tudo. Após a libertação de Homs, Aleppo e Deir-el-Zor, o exército Sírio decidiu lançar este enclave. Esta guerra de libertação provocou muitos mortos, feridos e sofrimento entre os civis, que se tornaram reféns dos jihadistas; lamentamos profundamente isso. Mas não podemos esquecer que os ataques aéreos do exército americano que ajudaram a libertar Mosul e depois Raqqa, causaram muito mais vítimas civis. E, como de costume, sempre que os indivíduos armados estreitaram o cerco, os meios de comunicação ocidentais começaram a falar sobre a crise humanitária, os ataques químicos, para preparar a opinião pública internacional, frente a uma possível intervenção militar contra a Governo Sírio. Eles oferecem uma imagem parcial do que está acontecendo. Nas redes sociais, existem muitas imagens fabricadas ou copiadas de outras guerras; fotografias que não mostram mais do que crianças e civis; nunca pessoas armadas, objetivo da ofensiva. Com vocês, eu me pergunto: por que não se fala dos massacres causados pelos bombardeamentos dos bairros civis de Damasco como "Bab Touma" ou "Kassa’a”? Por que os meios de comunicação ocidentais e os seus governos não contam o drama cotidiano dos habitantes de Damasco?
Crescente pessimismo
O otimismo cauteloso que tivemos no início deste ano sobre o fim da guerra e a restauração de uma paz verdadeira tornou-se crescente pessimismo, porque a situação na Síria converteu-se em uma confusão impossível de desfazer. Com o exército turco no noroeste, as tropas americanas apoiando as milícias curdas, no nordeste, as incursões israelenses ao sul e a situação em Damasco e La Ghuta, não sobram razões para estar otimista.
Menos mal que entre os jornalistas há pessoas boas que, arriscando suas vidas, vêm ver a realidade no local. Um deles, Ivan, do Diário de Navarra, passou mais de uma semana entre Damasco e Alepo; experimentou o que significa a guerra, o medo, a ansiedade da população, e pôde constatar uma destruição inimaginável.
Se me alonguei falando sobre a guerra no início desta carta, não é porque quero mostrar uma face de morte e de medo; pelo contrário: quero falar da força de vida que tem o povo sírio. Queremos viver e viver com dignidade! Viver em paz! Viver livres de toda opressão! Viver longe do sofrimento!
Basta!
Hoje, nós, Maristas Azuis, acolhemos uma criança de 5 anos de idade. M, tem o rosto, as mãos e os pés completamente queimados. Seu rosto desfigurado assombra-me; deixa-me sem palavras. Só me resta a força para denunciar uma guerra que se prolonga que se perpetua. Basta! Dizem os nossos amigos espanhóis. Kafa! Dizemos em nossa língua árabe.
Felizmente, existem sóis que vêm esquentar nossa vida e iluminar nossas vidas cotidianas um tanto sombrias. Um destes sóis é Sumaya Hallak, uma jovem suíça, originária de Alepo, neta de um grande poeta daqui. Veio para permanecer oito dias conosco e para nós. Junto com Marie-Laure, cineasta e Sawsan e Rand, duas moças que estudam Conservatório em Damasco. Sumaya encarregou-se da animação, de manhã e à tarde, de oficinas de canto, de dança e terapia para os traumas da guerra, para todos os nossos grupos: as crianças do “Aprender a crescer” e do "Quero aprender”, os adolescentes do "Centro de competências", as senhoras do projeto "Desenvolvimento da mulher" e todos os monitores e monitoras. Sumaya trouxe-nos alegria e um pouco de felicidade. Ela prometeu voltar em abril e no verão.
Projetos dos Maristas Azuis
O projeto "Educação e desenvolvimento da mulher" é uma fonte de alegria e orgulho para nós. Trinta mulheres com mais de 30 anos e outras tantas jovens participam duas vezes por semana de oficinas interativas sobre temas que as interessam: como gerenciar um orçamento familiar, o casamento precoce, a reciclagem de alimentos, a higiene e os distúrbios ginecológicos, etc. As participantes vêm de contextos diferentes e têm criado relações muito fraternas entre elas. Vemo-las tão felizes que nenhuma falta. O curso tem a duração de dois meses. Vamos organizá-lo com outras participantes.
Com o "MIT" e o projeto "Job", colaboramos na reconstrução das pessoas, das famílias e do país. Além das oficinas de três dias que estamos organizando já há quatro anos, na semana passada começamos a 5ª sessão do tema "Como criar teu próprio miniprojeto". Vinte adultos vão dedicar 42 horas para aprender e aplicar os conceitos básicos de estimativa de custos, rentabilidade, marketing… para seu próprio projeto. Quando o tiverem bem elaborado, eles o apresentarão a um júri. Nós, os Marista Azuis, financiamos os melhores projetos utilizando os critérios de viabilidade, rentabilidade, durabilidade e de criação de emprego. Desta forma, ajudamos as famílias a viver com dignidade, sem depender de subsídios recebidos durante os anos de guerra e, ao mesmo tempo, gerar emprego num país com tanta necessidade, dado a atual estagnação da economia.
Uma das grandes satisfações foi o encerramento do programa "Civis feridos na guerra". Coincidindo com o 5º aniversário da sua criação, em novembro de 2017, consideramo-lo encerrado, porque as razões que motivaram sua criação tinham desaparecido. Alepo, de fato, goza de 14 meses livres de ações militares, graças a Deus. Celebramos o encerramento com um jantar de família que reuniu os três parceiros do projeto: os médicos do Hospital São Luís, as Irmãs do hospital e os membros da equipe dos Maristas Azuis. O Dr. Nabil Antaki apresentou um Power Point coletando toda a história do projeto, seu espírito, suas realizações e seu financiamento.
Entregou-se a todos os participantes um certificado de reconhecimento e uma medalha de prata comemorativa (oferecida por um benfeitor): de um lado aparece o logotipo do projeto e do outro o logotipo dos Maristas Azuis. Foram cinco anos de entrega gratuita para servir centenas de feridos graves e salvar dezenas de vidas; de generosidade sem limites em procedimentos médicos e cirúrgicos por parte dos médicos; de cuidados de saúde exemplares, de amor infinito por parte das religiosas e do grupo de enfermeiros; de um financiamento sem restrições e de uma gestão sem falhas por parte dos Maristas Azuis.
Ontem tivemos uma festa em nossa casa. Celebramos a 4ª cerimônia de entrega de diplomas; esta vez correspondeu às dez mulheres que, há quatro meses, participaram nas nossas sessões de "Corte e costura" do projeto. Elas já adquiriram as habilidades necessárias para entrar no mercado de trabalho e também contribuir para as necessidades da sua família.
Nosso projeto de reciclagem de roupa "Feito de Coração" vai que é uma maravilha. Ao todo, emprega 11 pessoas; e as peças que saem da oficina são verdadeiramente magníficas; são vendidas em uma loja no centro da cidade, permitindo-nos o autofinanciamento do projeto.
Programas de assistência
Nossos programas de assistência continuam da maneira usual. O programa "Os Maristas Azuis pelos desalojados" distribui mensalmente bolsas de alimentos, produtos de higiene e dinheiro (oferecido pela Caritas-Polônia) às famílias desalojadas ou carentes. Aos desalojados ajuda-se também a pagar o aluguel do apartamento onde ficam. No Natal, todos os membros das famílias que atendemos (mais de 4.000) receberam roupas e calçados novos. Na Páscoa lhes será oferecido carne e uma cesta de frutas.
O "Programa médico" ajuda a financiar 150 ações médicas que se realizam por mês: procedimentos cirúrgicos, internação, receitas médicas, análises laboratoriais, raios-x, que os doentes, empobrecidas pela guerra, são incapazes de pagar. O programa "Gota de leite" contribui para o crescimento físico e mental de cerca de 3.000 crianças com menos de 11 anos, fornecendo-lhes leite todo mês.
Projetos educacionais
Os projetos educacionais são também pequenos sóis no nosso céu. A felicidade das crianças do "Aprender para crescer" e do "Quero aprender" é igualada apenas a de seus 24 monitores e monitoras. No momento, os pequenos estão preparando a festa das mães, que celebraremos no dia 21 de março. O "centro de habilidades" realiza projetos interessantes para os adolescentes; entre eles, vários programas de solidariedade por ocasião da Quaresma.
Graças a sua assiduidade e ao esforço de seus educadores, o projeto "Eliminação do analfabetismo" conseguiu que muitos adultos analfabetos agora são capazes de ler um texto. Outros adultos, homens e mulheres, já estão no 4º nível do projeto "Esperança" para a aprendizagem do Inglês. Sentem o orgulho de ajudar seus filhos em seus estudos e manter uma conversa.
Antes de terminar, gostaria de dar-lhes uma grande notícia. A pedido de muitos dos nossos amigos, em breve publicaremos um livro escrito por Nabil Antaki e por mim. Será intitulado "As cartas de Alepo" e será publicado pela edições l'Harmattan. É uma compilação de todas as cartas que tenho escrito durante esses anos de guerra, enriquecida com extratos de entrevistas e outros textos. Na verdade, o livro já está sendo impresso e em breve estará disponível nas livrarias. Em "As cartas de Alepo" apresentamos um panorama da situação, relatamos os sofrimentos dos desalojados, a miséria dos pobres, a angústia dos habitantes e a atrocidade da guerra; descrevemos igualmente a nossa resposta a estas tragédias mediante a compaixão, o acompanhamento, a solidariedade e o dom de si mesmo, por meio dos Maristas Azuis.
Que o Senhor da vida que nos dê "sua Paz"
Aproximamo-nos da Páscoa, tempo de celebrar a morte e a ressurreição de Cristo. Todos são convidados a rezar ao Senhor da vida que nos dê "sua Paz": uma Paz de justiça e de perdão, uma Paz que aceita o outro tal qual ele é, uma Paz que estende a mão, uma Paz que rejeita a violência, uma Paz que se traduz em gestos de misericórdia, uma Paz que toca o coração de pedra das pessoas para transformá-lo em um coração de carne, uma Paz que anuncia a civilização do amor, uma Paz que realiza a vontade de Deus em nossa terra.
Desejamos-lhes que vivam essa Paz e que por meio de vocês, ela se irradie em nosso mundo.
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Alepo, 4 de março de 2018
Ir. Georges Sabé, em nome dos Maristas Azuis.