20 de dezembro de 2006 FILIPINAS

O projeto da missão ad gentes

Davao é uma cidade filipina que se encontra ao sul da ilha de Mindanao, uma das mais importantes ilhas que compõem o arquipélago filipino. Quando os superiores escolheram Davao como sede destes cursos, já podiam perceber o choque cultural, físico e social que iria provocar na maioria dos participantes. Viver em Davao e na ilha de Mindanao, é como já viver em uma fronteira, porque, apesar de que o lugar onde estamos instalados seja como um oásis, descobre-se do outro lado dos muros a pura e crua realidade na qual vivem muitas pessoas das redondezas. É justamente também na ilha de Mindanao onde a maioria dos irmãos filipinos realizam sua missão. Agora eu poderia lhes falar de modo amplo e longo das comunidades maristas que estão dando aqui um testemunho profético, inclusive arriscando suas próprias vidas, para «tornar Jesus Cristo conhecido e amado» em zonas de influência muçulmana. Esta é outra das fronteiras da missão que aqui se descobre: ser testemunha de Jesus Cristo, viver nesta fronteira como missionário, pode lhe custar a vida.

A vida em Davao durante estes meses tem sido um desafio, provocador e desestabilizador, nada a ver com aqueles primeiros sonhos que, em princípio, alguns de nós tínhamos. Gostaria de agradecer o Ir. Luis Sobrado, Vicário geral, que carregou nossas baterias desde os primeiros momentos e que nos transmitiu essa paixão, o fogo interior que resume as palavras do Ir. Seán em sua convocação. «Algo se move na congregação… para melhor», disse-me ele. «Esta missão ad gentes não é o fruto da casualidade, não é um sonho mau, nem mesmo é um abarrotamento de documentos eclesiais ou capitulares. Aqui está latente o Espírito, que nos guia por caminhos inesperados.»

Ao longo destes meses, foram realizados os diversos ateliês e experiências que a equipe de orientação havia programado. Mas felizmente nem tudo estava programado e previsto. Por exemplo, no que se refere à vida comunitária. A comunidade foi a primeira fronteira ou limite que estamos procurando superar. Não é sempre que se convive todos os dias em uma comunidade internacional, multicultural e multirracial como a que formamos aqui com os 20 irmãos participantes, porque pretendemos ser um instituto internacional. Penso que este seja outro dos novos desafios, ao qual nos convida o irmão Superior geral e seu Conselho: a criação de comunidades internacionais que superem uma visão estreita do provincianismo fora de moda e que sejam testemunhas da fraternidade universal, assim como somos chamados a viver, segundo a nossa vocação: «Em um mundo cada vez mais fragmentado e individualista, nos sentimos fortemente chamados a viver a profecia da fraternidade, a colocarmos em prática o ?ser irmãos? das crianças e dos jovens, através de gestos concretos de cuidado e de acolhida, de escuta e de diálogo. O fogo de Pentecostes nos impulsiona a avançar na missão ?ad gentes? com toda a Igreja» (Mensagem do 20º Capítulo geral, 35-36).

O novo pede novidade

Estamos conscientes de viver em um planeta cada vez mais globalizado, o que exige das congregações religiosas novos empreendimentos, novos enfoques sobre a missão e sobre a própria estrutura da vida religiosa. E nossa congregação é bem consciente disto. Por isso o Ir. Seán e os últimos Capítulos gerais insistem tanto em nos dar respostas criativas e audazes diante dos novos areópagos que estão surgindo em todos os setores, questionando nosso estilo de vida e nossa própria existência, e nos convidam a descobrir as novas fronteiras da missão. Quem sabe, ao ouvir esta expressão, alguém possa pensar que me refiro às fronteiras geográficas dos novos países da missão ad gentes. A estes eu gostaria de dizer que tal expressão existe já há alguns anos, e que mesmo o Papa anterior a utilizou em numerosas ocasiões. Mas então, a que se refere exatamente? O Papa nos responde: «Hoje nos encontramos diante de uma situação religiosa bastante diversificada e mutável. Os povos estão em movimento, as realidades sociais e religiosas, que há algum tempo eram claras e definidas, hoje em dia se transformam em situações complexas. Basta pensar em alguns fenômenos, como o urbanismo, as migrações de massa, o movimento dos refugiados, a descristianização de países de antiga história cristã, o influxo vigoroso do Evangelho e de seus valores em nações onde a grande maioria não é cristã, o aparecimento rápido de messianismos e seitas religiosas» (Redemptoris Missio, 32)

Somente partindo da audácia e do zelo evangélicos que se pode afrontar estes novos areópagos. Tudo isto requer uma nova capacitação para os futuros missionários. Muitas vezes deverão ser atravessadas vários tipos de fronteiras para acompanhar o Cristo em sua missão. E onde Ele está, ali nós deveremos estar. «Hoje a Igreja deve enfrentar outros desafios, projetando-se além das novas fronteiras, tanto no que se refere à primeira missão ad gentes como na nova evangelização de povos que já receberam o anúncio do Cristo. Hoje se pede a todos os cristãos, às Igrejas particulares e à Igreja universal, a mesma valentia que moveu os missionários do passado e a mesma disponibilidade para ouvir a voz do Espírito» (RM 30).

Hoje em dia encontramos comunidades que parecem cansadas, onde se acrescenta a rotina, a batalha entre aquilo que se aspira e a realidade, o medo de uma situação nova, «a falta de fervor, que é ainda mais grave quando vem de dentro. Esta falta de fervor se manifesta no cansaço e na desilusão, na acomodação ao ambiente e no desinteresse, mas sobretudo na falta de alegria e de esperança» (RM 36). Sente-se aqui a ausência do fôlego do Espírito. Diante desta situação devemos nos perguntar se a missão não é aquele dinamismo que restitui a vida e a esperança às comunidades? «O fogo de Pentecostes nos impulsiona a avançar na missão ?ad gentes? com toda a Igreja» (Mensagem do 20º Capítulo geral, 36). Desde Pentecostes, o dinamismo eclesial vai sempre ultrapassando todas as fronteira e margens para brotar em espaços novos: «É necessário manter viva a solicitude ao anúncio e à fundação de novas Igrejas nos povos e grupos humanos onde elas não existem, porque esta é a tarefa primordial da Igreja, que foi enviada a todos os povos, até os confins da terra. Sem a missão ad gentes, esta mesma dimensão missionária da Igreja estaria privada de seu significado fundamental e de sua atuação exemplar» (RM 34). Somente se nos perguntarmos a respeito das fronteiras da história e dos novos areópagos que poderemos dar respostas a outras perguntas fundamentais: Onde se deve testemunhar a fé? Onde nos está chamando o Espírito de Jesus? O último Capítulo geral recomenda: «Que seja facilitada a mobilidade dos irmãos de uma província a outra, em vista de dar impulso a projetos de solidariedade, de evangelização e de educação». (46). Por isso, a globalização da solidariedade e o serviço à reconciliação entre os povos devem se transformar nos «confins» prioritários para a missão do futuro. O Espírito nos impulsiona a sair, a ultrapassar os muros, porque «do lado de fora» se encontra o coração do mundo, e somente quando se sai se pode perceber suas batidas e suas inquietudes. Esta é a espiritualidade do êxodo: sair, deixando nossas seguranças para encontrar Deus do lado de fora, e para isso teremos que cruzar as margens e ultrapassar as fronteiras.

Quem sabe agora adquiram um sabor profético aquelas palavras paulinas que tantas vezes temos escutado, meditado e proclamado : «Mas como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador. E como podem pregar se não forem enviados? Conforme está escrito: ?Quão maravilhosos os pés dos que anunciam boas notícias?» (Rom 10,14-15).

Irmãos ad gentes

Completará agora um ano da publicação da Carta de convite à missão ad gentes, dirigida pelo irmão Superior geral a cada um dos irmãos. Naquele momento ? tenho que confessar ? eu não soube captar o alcance desta iniciativa audaz. E eis-me aqui, que agora me vejo embarcado e participante deste singular projeto.
Há alguns meses um irmão missionário me confessava o seguinte: «Na vida do missionário não há muito ?romantismo?, mas às vezes bem mais ?drama?; não há muita poesia, mas muita e dura prosa quotidiana. Olhos sempre bem abertos para observar, ouvidos atentos para ouvir e um coração disposto a acolher o novo, o diferente, e deixar-se evangelizar ao longo do caminho».

Muitas coisas se passaram desde então: seminários, ateliês, experiências de inserção, encontros entre congregações, visitas dos superiores… De tudo o que temos ouvido, visto e experimentado, prefiro falar das experiências de inserção. Ao longo destes meses, temos participado de três tipos diversos de inserção. A primeira teve um caráter semanal: trabalho com as crianças de rua, idosos, presos, deficientes físicos ou psíquicos, pequenos drogados. De cada uma destas experiências se poderia escrever muito. Mas as duas experiências que mais marcaram e deixaram uma profunda impressão vieram da convivência, durante uma semana, em uma comunidade marista da região (padres, irmãos, irmãs). Nossos olhos se abriram a muitas realidades: o trabalho com prostitutas, a formação de catequistas e de líderes comunitários, o desenvolvimento agrícola, o trabalho universitário, o diálogo interreligioso com muçulmanos em zonas de risco, a implantação de comunidades eclesiais de base em zonas indígenas, a pastoral vocacional com outras congregações, a animação pastoral de comunidades que estão longe das paróquias e ficam sem assistência religiosa. Estas experiências nos ajudaram a conhecer novas possibilidades de missão e a desenvolver a colaboração com outras congregações.

A segunda experiência importante de inserção se realizou em ambientes sociais diferentes: uma vivência com pescadores de Padada, com camponeses em Buda e em escolinhas tribais de montanha em Dom Marcelino (nada a ver com Champagnat, mas com seu espírito). Compartilhamos a vida das pessoas convivendo com elas em suas casas, com sua pobreza, em sua cultura, suas aspirações, suas lutas, seus valores, sua maneira de se encontrar com Deus…, compartilhando seu trabalho, sua comida, sua casa, o lugar para dormir, seus sanitários… Tudo isto a partir da perspectiva deles e da Palavra, que neste dia privilegiava os «pobres, os estropiados, os cegos e os coxos…» (Lc 14,21.24). Fomos cinco irmãos a diferentes escolinhas de montanha, perdidas e distantes, muito pobres e separadas entre si. Com os indígenas se vivia na casa do professor, em uma casinha de bambu construída pela comunidade. O professor, cuja família vive em outra parte, também era nativo dali e falava a língua local. Esta experiência nos pareceu muito semelhante àquela que viveram os primeiros irmãos que foram enviados dois a dois aos vilarejos, e que faziam sua comida e viviam com seus alunos. O que descobrimos nos ajudou a entender a visão do Padre Champagnat, que era de enviar os Irmãozinhos de Maria às zonas rurais pobres.

Ser missionário na Ásia

Viver na Ásia significa ter que constantemente cruzar as fronteiras divisórias de uma variedade vertiginosa de idiomas, de raças, de culturas e de religiões. Além das fronteiras geográficas, existem outras, criadas em conseqüência do processo de globalização: a crescente fissura entre ricos e pobres, a violência contra mulheres e crianças, o fundamentalismo religioso, os conflitos políticos e militares. Ser missionário na Ásia requer uma solidariedade afetiva e efetiva com as pessoas de ambos os lados das fronteiras, especialmente em relação aos marginalizados e oprimidos. Na Ásia, o missionário deve se comprometer em viver uma espiritualidade marcada pela presença, pelo diálogo através da vida, a inculturação, a transformação da mentalidade e do estilo de vida, a reconciliação, a harmonia, o diálogo interreligioso, e a viver as «intempéries» dos homens. Deve ser uma pessoa seduzida por Jesus e seu Reino, uma parábola vivente de comunhão e fraternidade apostólica. Não faltarão as dificuldades aos nossos irmãos missionários na Ásia. Por exemplo, em alguns países está proibida a entrada explícita de missionários, em outros está proibida não apenas a evangelização mas também a conversão, incluindo-se o culto cristão. Há lugares na Ásia onde os cristãos continuam vivendo em clandestinidade, em outros lugares os obstáculos são de tipo cultural: a transmissão da mensagem evangélica é insignificante ou incompreensível e a conversão é considerada como um abandono do próprio povo e sua cultura.

Todas as dioceses do mundo entram em nossos planos

Cada vez compreendo melhor este sonho de nosso fundador. Quando se lê a correspondência que manteve com os missionários destinados à Oceania, percebe-se que o Padre Champagnat estava sempre atento às «inspirações» da Providência e que nunca descartou nenhum continente como campo de missão. Hoje também entendemos melhor o que escrevia o Papa anterior na Redemptoris Missio, 82, sobre a missão urbana: «São cada vez mais numerosos os cidadãos dos países de missão e os que pertencem a regiões não cristãs, que vão se estabelecer em outras nações por motivo de trabalho, de estudo, ou então obrigados pelas condições políticas ou econômicas em seus lugares de origem. A presença destes irmãos em países de antiga tradição cristã é um desafio para as comunidades eclesiais, animando-as à acolhida, ao diálogo, ao serviço, à partilha, ao testemunho e ao anúncio direto. De fato, também nos países cristãos se formam grupos humanos e culturais que exigem a missão ad gentes. As Igrejas locais, com a ajuda de pessoas provenientes dos países dos imigrantes e de missionários que tenham regressado, devem se ocupar generosamente destas situações».

Por tudo isto devemos também nos alegrar, porque hoje nosso Instituto se sente chamado a responder a este especial desafio da missão ad gentes com ousadia e arrojo, além de desafiar todas as previsões humanas. Como Champagnat, coloquemos nossa confiança na Providência, que nunca abandona os que a ela se confiam.

Ir. Miguel Ángel Sancha

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