17 de dezembro de 2018 CASA GERAL

Pierre Claverie e 18 companheiros mártires

A cerimônia de beatificação de Pierre Claverie e 18 companheiros mártires, celebrada em Orão no dia 8 de dezembro de 2018, foi um acontecimento acompanhado de perto pelos meios de comunicação argelinos e estrangeiros, por jornalistas que somaram uns sessenta pedidos de credenciamento. O ato principal, retransmitido ao vivo pelo Canal argelino DZ e em formato digital para numerosos espaços especializados, suscitou reações interessantes das quais selecionamos as mais significativas.

Em primeiro lugar é preciso notar a unanimidade em destacar a importância do acontecimento. Foi a primeira vez que tal acontecimento, da Igreja Católica, foi celebrado em um país muçulmano. A cidade de Orão, na Argélia, acolheu a celebração no dia 8 de dezembro de 2018, no Santuário Nossa Senhora da Santa Cruz (RFI África).

Em segundo lugar, os meios insistiram que estes 19 beatos para a Igreja Católica são mártires, que na linguagem cristã quer dizer “testemunhas da fé”, porque foram assassinados em nome da sua fé cristã e do seu amor pelo povo argelino o qual não quiseram abandonar quando atingido pelo cataclismo de uma espantosa guerra civil (RFI). Os 19 novos beatos morreram na Argélia durante a chamada “década negra”.

Estes "19 mártires da Argélia" são: 15 franceses; dois espanhóis; um belga; um maltês, pertencentes a oito congregações diferentes, mortos entre 1994 e 1996, durante a guerra civil na Argélia (FranceSoir).

La Croix destacou que esta celebração, que parecia ser "impossível", finalmente foi realizada e transmitida uma mensagem de reconciliação e uma possível cura das feridas. Perante uma grande multidão, que incluía familiares dos beatos, representantes das quatro dioceses da Argélia, amigos argelinos, funcionários do governo, entre eles o Ministro de Assuntos Religiosos, Mohamed Aïssa e o prefeito de Orão, a celebração transmitiu uma mensagem de "reconciliação e de fraternidade".

Por incrível que pareça, foi a Argélia, um país com uma memória ferida, ainda dividido entre as tentações de fechamento e de abertura, que acolheu a primeira beatificação num país de maioria muçulmana. Um país que disse inclusive, nos últimos meses, estar disposto a dar boas-vindas ao Papa Francisco, se ele "desejar vir", disse o bispo de Orão, Jean-Paul Vesco… e que tem muitas surpresas a oferecer-lhe.

 

Dificuldades

A beatificação foi apresentada como um tema delicado, especialmente em relação à forma como seria recebida pelo povo argelino. "O risco é que, de repente, na Argélia o no mundo muçulmano, se diga: aqui há uma igreja que honra suas 19 vítimas quando nós tivemos 200.000, entre elas uma centena de imãs, coisa que não se conhece na França, advertiu a alguns meses o bispo de Orão, Jean-Paul Vesco. Porém, por outro lado, o imã da mesquita situada no fundo da Kasbah, durante a pregação de sexta-feira, depois do assassinato do Ir. Henri Vergés e da Ir. Paul Hélène, denunciou esses assassinatos e ele mesmo foi assassinado. Se estamos falando disso, obviamente, a beatificação se enche de significado".

Isso é precisamente a mensagem desta beatificação excepcional, a primeira na terra do Islã: homens e mulheres da Igreja foram assassinados junto com muçulmanos que rejeitavam a radicalização e a violência (RFI). Daí o desejo da Igreja Católica que a beatificação fosse feita na Argélia.

Os 19 religiosos são considerados mártires. Para Jean-Paul Vesco, mártires são aqueles que preferiram morrer para não renunciar a sua fé. "Esta palavra “mártir”, ligada aos 19, coloca um problema porque alimenta a má interpretação de que os cristãos foram assassinados pelos muçulmanos. Jean-Paul Vesco, bispo de Orão, explicou em um debate o significado e o que está em jogo neste evento. Não se trata de cristãos assassinados por muçulmanos, mas de cristãos assassinados com muçulmanos. (https://www.catholiques17.fr) De fato, estes 19 foram assassinados porque eram cristãos, mas também porque eram estrangeiros. Naquele momento, a guerrilha também matou imãs, intelectuais… que não são vítimas da fé mas vítimas como todas as demais. Portanto, para ele, com esta beatificação vale a pena dar ao mundo o testemunho de uma vida e de uma morte juntos”. (https://www.catholiques17.fr).

Os 19 mártires beatificados negaram-se a considerar os riscos, a abandonar a Argélia e sua população, com quem, disseram, estavam profundamente unidos. Daí o desejo da Igreja Católica de que sua beatificação fosse feita na Argélia, segundo o bispo Paul Desfarges. "Não queríamos uma beatificação entre cristãos, porque estes irmãos e irmãs morreram no meio de dezenas de milhares de argelinos" muçulmanos que morreram durante a década (1992-2002) (https: //www.catholiques17.fr).

Jean-Paul Vesco, atual bispo de Orão, propôs a cidade de Orão para celebrar a beatificação. Explicou os motivos: "Na minha opinião a beatificação devia ser celebrada no país onde viviam, especialmente quando decidiram ficar junto a seus amigos argelinos e muçulmanos, apesar da ameaça". Esta opção parecia complicada para ser concretizada e inclusive ser aceita pelas autoridades argelinas. "Para mim foi uma grande surpresa, na reunião com o Ministro de Assuntos Religiosos, que a proposta do lugar da beatificação foi bem aceita e inclusive com facilidades" (https://www.catholiques17.fr).

Sem dúvida, Jean-Paul Vesco, também manifestou o temor de que poderia haver más interpretações desta beatificação, a primeira delas por ser na Argélia, disse: "Imaginemo-nos que a Igreja queira beatificar aqui na Argélia estes religiosos; seria grotesco porque quem são essas 19 pessoas em comparação às 200.000 vítimas argelinas?" Esta reflexão poderia dar lugar a uma má interpretação, que teria, disse Jean-Paul Vesco, a consequência de separar a Igreja do resto do país. "É exatamente o contrário do que queremos. Esta beatificação é uma maneira de reconhecimento oficial da forma como vivemos nossa religião aqui na Argélia. Destaca não só o modo de vida próprio da Igreja aqui na Argélia, mas também a forma como vivemos juntos" (https://www.catholiques17.fr).

Mohammed Bouchikhi, de 22 anos, que foi assassinado junto com o bispo Pierre Claverie, ofereceu a chave para dar uma resposta convincente. "O sangue de Mohamed Bouchikhi (22 anos) misturado ao de Pierre Claverie, por meio desta beatificação, lançará luz sobre o vínculo entre cristãos e muçulmanos" (https://www.catholiques17.fr).

 

Um grande sinal

Viver juntos e em paz foi a forte mensagem das autoridades religiosas muçulmanas e cristãs, por meio da beatificação dos monges cristãos e uma homenagem aos 114 imãs assassinados (Le Soir d'Algerie).

A beatificação deste sábado em Orão, dos 19 religiosos católicos, que morreram na Argélia durante a década negra, é "um grande sinal da irmandade que há na Argélia, para todo o mundo", disse o Papa Francisco (vatican.com).

 

Dimensão política

Os meios de comunicação locais foram os que mais destacaram essa dimensão. Esta cerimônia é ante de tudo uma vitória para as autoridades e para Mohamed Aïssa, Ministro de Assuntos Religiosos. Foi ele que participou da organização desta cerimônia, inclusive permitindo que as famílias dos bem-aventurados viessem. Esta celebração, a chegada de um cardeal do Vaticano, são símbolos fortes da imagem da Argélia. E isto é o que afirmou o ministro Aïssa: "Que a Argélia dos muçulmanos coexista com outras religiões é um sinal" (RFI África).

Para Jean-Baptiste Lemoyne, Secretário de Estado ante o Ministro de Europa e Assuntos Exteriores, "o fato de estarmos aqui hoje, juntos, todas as confissões com seus representantes, para cultivar a memória destes religiosos é um sinal muito forte." (Le Quotidien d'Orão).

Em diversas ocasiões, o ministro de Assuntos Religiosos recordou que a reconciliação nacional pode curar as feridas. "Viremos esta página, porém sem esquecer. Estamos avançando para o futuro e trabalharemos para que nossa sociedade seja uma sociedade de paz, de reconciliação e de uma verdadeira convivência". O cardeal Becciu, que também falou na mesquita, disse: "Colaboraremos todos juntos para uma sociedade justa baseada na paz e no respeito. Estamos todos comprometidos em viver em paz." (Le Soir d'Algerie).

Assim como a beatificação "é um reconhecimento muito profundo por parte da Igreja Católica, que depois da pesquisa que durou cinco anos, demonstrou que estes monges optaram por servir na Argélia com dedicação e devoção", disse em meados de setembro o Ministro de Assuntos Religiosos, Sr. Mohamed Aïssa, "o reconhecimento católico destes monges não exclui o reconhecimento de seus esforços por parte da Argélia. É por isso que o reconhecimento também será político", acrescentou Mohamed Aïssa (The Daily of Orão).

O Ministro de Assuntos Religiosos dirá, em relação a este evento organizado pelas autoridades argelinas em colaboração com a Igreja Católica, que a Argélia é um país plural. A Argélia que defende a convivência (nome dado à esplanada da igreja de Santa Cruz), a convivência e a união, e isso também mostra que a Argélia é um país de direito que respeita a liberdade de culto e onde a liberdade de consciência está garantida pela Constituição.

O Ministro de Assuntos Religiosos, querendo responder aos críticos sobre esta beatificação, explicou que é "uma iniciativa de Argélia e me orgulha ao vir da Igreja Católica de Argélia, e de seu bispo que é de nacionalidade argelina".

As autoridades argelinas tinham uma linha vermelha: a política de reconciliação nacional. Porém para os argelinos presentes nesta beatificação, não era uma questão de política, mas de recordar e de partilhar (RFI).

 

Dimensão inter-religiosa

A celebração da beatificação num país muçulmano foi também nos meios de comunicação locais uma dimensão de diálogo inter-religioso, convivência e entendimento.

Convidados a entrar na impressionante sala de oração da mesquita, todos os convidados tanto muçulmanos como cristãos, estavam em comunhão em torno ao mesmo discurso: paz e convivência (Le Soir d'Algerie).

A convivência em paz supõe uma forte mensagem das autoridades religiosas muçulmanas e cristãs, por meio da beatificação dos monges cristãos e a homenagem aos 114 imãs assassinados (Le Soir d'Algerie).

Os dignatários muçulmanos da cidade uniram-se à celebração ao receber as famílias dos beatos na Grande Mesquita Ibn Badis, na presença do cardeal Becciu e do ministro de Assuntos Religiosos da Argélia. "Nós muçulmanos, nos associamos com grande alegria a este evento", disse o imã Mostapha Jaber, na Grande Mesquita (Francia). E o bispo Jean-Paul Vesco: "Não podemos começar esta celebração sem render homenagem à Grande Mesquita, aos milhares de vítimas argelinas dos anos 90" (RFI AFRICA).

O padre Thierry Becker, antigo assistente do bispo Claverie recordou à AFP: sua beatificação "mostra que uma vida partilhada com os de outra religião, é cristão". (FranceSoir).

 

Dimensão eclesial

A beatificação foi uma oportunidade para manifestar a identidade da Igreja argelina e seu modo peculiar de viver a vida cristã no meio de um povo de maioria muçulmana. Esta dimensão foi sublinhada especialmente pela imprensa local.

"A escolha do Santuário de Nossa Senhora da Santa Cruz para a cerimônia da beatificação é uma opção modesta em consonância com nossa Igreja, de modo que se assemelhe o mais possível à vocação de nossa Igreja, da qual nossos beatos se convertem como num belo ícone". (Declaração conjunta, dos bispos da Argélia citada pelo Diário de Orão). Jan-Paul Vesco, bispo de Orão esclareceu: "O significado destas beatificações é o valor do testemunho dos cristãos assassinados com muçulmanos". Não se trata de centrar a atenção nos "cristãos vítimas da violência", mas de coloca-los "em comunhão com todos os argelinos" que sofreram muito durante a guerra civil que matou pelo menos a 200.000 pessoas na Argélia. (Le Quotidien d'Orão).

A Igreja da Argélia tem um forte senso de diálogo inter-religioso. Este acontecimento foi pensado para ser una cerimônia de intercâmbio entre cristãos e muçulmanos (RFI África). É significativo o título de Le Soir d'Algerie que noticiava este acontecimento: “Religiosos muçulmanos e cristãos em comunhão”.

Num discurso do Papa Francisco, lido na ocasião, esta cerimônia ajuda, disse, a curar as feridas do passado e a criar uma nova dinâmica de convivência. O Papa agradeceu ao Presidente da República por permitir a organização desta celebração enquanto rendia homenagem aos filhos e filhas da Argélia vítimas da mesma violência (Le Soir d'Algerie).

Dom Jean-Paul Vesco convidou os fiéis presentes no Santuário Nossa Senhora da Santa Cruz a observar um minuto de silêncio "em homenagem ao povo argelino e a seus líderes que encontraram o caminho para a paz apesar das feridas ainda dolorosas" (RFI).

 

Dimensão profética: "A paz esteja contigo!"

Por terem vivido a amizade entre cristãos e muçulmanos até o fim, por terem anunciado o "amor universal a todos", o reconhecimento por parte da Igreja aos 19 novos beatos é certamente um ato profético. (La Croix)

Como síntese deste acontecimento podemos oferecer um ícone e um documento. A imagem é do ícone feito para a celebração: vemos os 19 religiosos beatificados com a cabeça aureolada. Na parte inferior direita, Mohamed Bouchikhi, o motorista do bispo de Orão.

Mohammed, de 22 anos, foi assassinado junto com o bispo Pierre Claverie, em frente ao bispado de Orão, no dia 1º de agosto de 1996. Seu caderno termina com esta oração em árabe literário, que foi lida durante a celebração:

"Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Eu te digo: a paz esteja contigo! Agradeço a pessoa que lerá meu caderno. Digo a todos que conheci em minha vida, que os agradeço. Eu digo que serão recompensados no último dia. Eu sinto por aquilo que me dói. Perdoo os que me perdoam no dia do juízo. Perdoem-me os que tenham escutado uma má palavra de minha boca. Recordo o que fiz bem em minha vida. Que Deus em sua onipotência me faça submeter-me a ele e conceda-me sua ternura". (La Croix).

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Ir. Antonio Martínez Estaún, Postulador Geral

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