21 de setembro de 2016 SíRIA

Revolta e compaixão

A trégua negociada entre russos e norte americanos entrou em vigor há apenas 5 dias. Até agora tem sido respeitada. Os habitantes de Alepo, muçulmanos, puderam celebrar a festa do sacrifício (Eid al Adha) nas ruas e nas praças, sem ter medo dos bombardeios e das bombas de gás cheias de prego e explosivos que os rebeldes lançam sobre a cidade, desde há 4 anos e 2 meses, produzindo todos os dias muitas vítimas. Até agora não houve uma matança como aconteceu há 70 dias, por ocasião da festa do Fitr, quando as bombas jogadas em zonas civis, nas ruas cheias de famílias celebrando, fizeram dezenas de mortos, principalmente crianças. Mesmo assim, os habitantes de Alepo estão alertas, são céticos em relação ao respeito da trégua, visto que ela não se refere aos dois grupos reconhecidos como terroristas pela comunidade internacional, Daech e Al-Nusra.

A situação se tornou novamente muito complicada. Agora existe uma internacionalização do conflito sobre o terreno. De um lado está a Turquia, que durante anos apoiou os terroristas, deixando que transitassem por suas fronteiras com suas armas. Ela se converteu em protagonista no conflito. De fato, o seu exército entrou na Síria (sem o acordo do país, que é um estado soberano, membro fundador da ONU) para, presumivelmente, combater ao Daech, mas, na verdade, é principalmente para lutar contra as milícias curdas que controlam várias localidades e cidades da zona da fronteira, na parte síria, ao sul da Turquia. Essas milícias são apoiadas, aconselhadas e armadas pelos americanos, que são, em princípio, aliados da Turquia. Que confusão! Por outro lado, os Estados Unidos admitiram que os turcos tenham uma base na Síria, com forças especiais perto de Hasaka, no leste do país. Enfim, não se fala mais da retomada das negociações e as posições permanecem imutáveis.

Alepo, nossa cidade, continua sofrendo. Os meios de comunicação ocidentais colocam o conflito na vitrina mediática. Os habitantes da cidade evitariam com prazer essa fama. Sofrem há 4 anos e desejam que esse pesadelo termine. Ficam revoltados quando se fala somente do sofrimento das pessoas de alguns bairros controlados pelos rebeldes e terroristas, com cerca de 250 mil habitantes. O sofrimento de um milhão e meio de pessoas, que vivem no outro lado da cidade, não é notícia. Ficam revoltados com as dezenas de morteiros, foguetes e bombas de gás que diariamente caem entre os civis, sem que alguém proteste. Estão revoltados com o corte total da eletricidade por longos períodos, pois as centrais elétricas se encontram na parte rebelde. Estão revoltados com a falta de água durante o calor do verão (40 graus na sombra), obrigados a utilizar a água de 300 poços cavados em plena cidade durante os dois últimos anos. Estão revoltados com o cerco que é realizado de tempo em tempo e pela escassez de tudo, que se segue. Estão revoltados pelo fato que, cada vez que o exército sírio avança um pouco ou ganha uma batalha para liberar o cerco imposto a Alepo pelos terroristas, os governantes e os meios de comunicação denunciam tal ação como crime contra a humanidade e promovem uma trégua para bloquear a conquista do exército do governo sírio.

 

Os dramas que vemos e vivemos são tantos que sem parar nos encontramos indignados. Aqui estão alguns exemplos:

  • Mahmoud, um menino de 6 anos de idade, sem pai, nasceu sem braços. Vivia com sua mãe, sua irmã e tio em uma pequena cidade da região de Alepo controlada pelo Daech. Este grupo impede que as pessoas que moram nas zonas controladas por eles deixem o local, pois as usam como escudos humanos. A família, como tantas outras, decidiu deixar a cidade de noite para vir para Alepo. Mahmoud estava sendo levado pelo tio quando uma mina, colocada pelo Daech, explodiu, matando o tio e ferindo gravemente as pernas da criança. Tivemos que amputá-las. E assim, Mahmoud não tem nem braços nem pernas. Revolta e compaixão.
  • O projeto imobiliário “1070” se compõe de dezenas de edifícios que não foram concluídos por causa da guerra, sem paredes, sem sanitários, apenas com o piso e teto. Estavam ocupados por centenas de famílias desalojadas. Abandonaram seus apartamentos em julho de 2012, quando os rebeldes invadiram seus bairros e se refugiaram na zona de Alepo sob o comando do exército sírio. Primeiro tinham se alojado nas escolas públicas e depois foram colocadas no “1070”, onde se instalaram usando lonas como paredes, caixas para a água e cubos como sanitários. Há um mês, “1070”, durante vários dias, o local foi alvo de disparos de morteiros e foguetes lançados por terroristas da Al-Nusra, que depois invadiram o local. As pessoas foram desalojadas novamente, pela terceira vez, tendo que abandonar seus parentes mortos e as poucas coisas que haviam adquirido durante 4 anos de miséria e ir viver em tendas, na periferia. Compaixão e revolta!

O êxodo dos habitantes de Alepo, especialmente os cristãos, continua. Depois da Europa e, em seguida, do Canadá, agora é a vez da Austrália para o pedido de vistos para os refugiados sírios. Hoje, os cristãos de Alepo são apenas um quarto do que eram no início da guerra. 

Entre revolta e compaixão, nós, os Maristas Azuis, continuamos nossos programas em favor das famílias desalojadas e dos mais pobres:

O programa “Maristas Azuis para os Desalojados” segue distribuindo cestas alimentares e sanitárias a cada mês para 850 famílias. Ajudamos também a pagar o preço para participar do programa “1 amper”, que lhes permite acender algumas luzes durante a noite graças a geradores privados. Uma vez por mês damos carne e frango. Alugamos também apartamentos para que possam ter um lugar para morar. Uma vez mais, nesse ano, para o início do ano escolar, doamos o material escolar para que as crianças possam ir à escola, além do auxílio econômico para pagar os gastos escolares.

O Projeto “Civis Feridos da Guerra” continua cuidando, gratuitamente, de civis de todas as religiões, feridos por bala, no Hospital S. Louis, dirigido pelas Irmãos de São José da Aparição.

O “Projeto Médico dos Maristas Azuis” financia mais de 100 ações médicas por mês para ajudar enfermos que não têm condições para pagar cirurgias, internamento, radiografias ou exames de laboratório.

O projeto “Tenho Sede” segue distribuindo água, gratuitamente, às famílias que dependem de nós. Nossas três caminhonetes, com tanques, vão dos poços até os apartamentos, sem parar.

O Projeto “Gota de Leite” distribui, cada mês, a cerca de 3 mil crianças, recém nascidos e até 10 anos, quantidades suficientes para todo o mês.

No início do verão, disponibilizamos parte do nosso pátio para criar um parque com brinquedos para as crianças. Inauguramos um espaço de verão onde nossas famílias passam cinco tardes por semana em um local mais seguro do que aquele onde vivem. As crianças brincam sob a vigilância de monitores e os adultos passam um momento de tranquilidade, jogando baralho ou simplesmente relaxando, tomando um café, chá ou um refrigerante. Nossos dois ônibus trazem e levam as pessoas dos bairros até a nossa casa. Essa iniciativa deu alegria a muita gente e tem sido uma boa terapia contra o stress.

Nossa equipe que visita aos desalojados aumentou, acolhendo muitos outros voluntários, antigos maristas da família de Champagnat. Visitam regularmente as famílias, seus lares, inclusive quando vivem em bairros periféricos mais perigosos, como o “1070”, para criar laços de solidariedade, informando-se sobre as suas necessidades, tentando resolvê-las.

Nossos projetos pedagógicos estão indo bem. Os educadores dos dois projetos “Aprender a Crescer” e “Quero Aprender” se reúnem, desde o começo de setembro, todas as manhãs para sessões de formação e aprendizagem dos programas, preparando o novo ano escolar. Será um ano difícil, visto o número recorde de pedidos de inscrição, apesar do espaço limitado. Todas as crianças do “Quero Aprender”, que não iam à escola por alguma razão, conseguiram o reconhecimento do Ministério da Educação do país e estão prontos para entrar no ciclo escolar, sem começar do zero. É um motivo de orgulho para as crianças, os pais e para nós.

Skill School” continua reunindo os adolescentes. Chegamos a 75 participantes, número que representa o máximo da nossa capacidade.

Nosso centro de formação para adultos, “M.I.T”, além dos períodos de 3 dias organizados há 3 anos várias vezes por mês, inaugurará, em poucos dias, uma nova forma. Uma sessão de 100 horas em um período de 8 semanas, três tardes por semana, para permitir que possam participar também as pessoas que trabalham. O tema é “Como criar o seu próprio projeto”. Contratamos os melhores expertos de Alepo para ajudar aos jovens adultos a começar um próprio negócio, para ganhar a vida. Ensinaremos, de modo prático, aos participantes como encontrar uma ideia de projeto, como executá-lo, como avaliar o custo do produto, como fazer um orçamento, como elaborar um plano de ação, como obter financiamento, como fazer propaganda e vender. No final das sessões, os participantes apresentarão seus projetos aos jurados, que serão espertos, e ajudaremos a financiar os melhores projetos.

Nosso projeto de “Erradicação do Analfabetismo” terminou o primeiro período com 40 participantes. Todos fizeram a prova do Ministério da Cultura e receberam um certificado do nível primário. Precisa ver a felicidade desses adultos que receberam o certificado, orgulhosos por saber ler e escrever.

Continuamos acompanhando as famílias, dando apoio psicológico, procurando entender suas necessidades, buscando devolver a elas a dignidade, muitas vezes roubada, dando esperança e fazendo sentir a nossa proximidade.

 

Indignados com tudo o que vivemos, vemos, ouvimos e sentimos, nós, os Maristas Azuis, estamos revoltados. Não podemos aceitar o inaceitável.

A compaixão é um dos nossos valores. Partilhamos o sofrimento de nossos irmãos e irmãs, suas angústias, desesperos e dramas.

A solidariedade é nossa maneira de viver a caridade e o amor com eles e para eles.

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Nabil Antaki
Alepo, 17 de setembro de 2016

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