4 de março de 2015 SíRIA

Triste Aniversário

Ao abrir meu computador para escrever esta carta, o telefone tocou para me informar que as bombas atingiram Azizié, bairro central de Alepo, próximo da Catedral Latina, na saída da missa das 17h. Minutos mais tarde recebi do Hospital São Luís a informação de que vários feridos graves haviam sido levados ali, além de várias pessoas mortas, entre elas uma jovem de 19 anos, Sima K. Por desgraça, esse é o nosso pão de cada dia durante muito tempo, especialmente durante estes últimos 20 dias, quando grupos rebeldes armados atacaram nossos bairros quase todos os dias, matando e ferindo com bombas, com cilindros de gás cheios de explosivos e pregos, além de franco-atiradores (uma das últimas vítimas dos franco-atiradores foi Nour A., de 25 anos, campeão de basquete). Vítimas inocentes de uma violência cega. Nosso hospital está cheio de feridos, atendidos gratuitamente como parte de nosso programa “vítimas civis da guerra”. 

Triste aniversário. Dentro de poucos dias vamos começar nosso quinto ano de guerra na Síria, desde que começou em março de 2011. Ninguém na Síria queria esta guerra, incluindo os mais críticos do regime. Ninguém na Síria (e me refiro na Síria) queria a destruição do país, nem a morte 250.00 pessoas, sem mencionar as centenas de milhares de pessoas amputadas e/ou feridas, o êxodo de milhões de refugiados e o sofrimento de 8 milhões de refugiados.

Triste aniversário. Os sírios sofrem ao ver o nome do país associado ao terrorismo internacional, ou seja, que 30.000 pessoas de 80 países chegaram à Jihad  na Síria como se a Jihad fizesse parte da tradição da Síria, como se a Síria fosse um país de extremistas islâmicos, e não um exemplo de tolerância e de convivência. Os sírios, mulçumanos ou cristãos, consideram-se sírios antes de reivindicar sua filiação religiosa. 

Triste aniversário. Os sírios temem o Daech (ISIS – Islamic State of Iraq and the Levant), essa monstruosidade que quer estabelecer um Estado islâmico (e que não tem nada a ver com o verdadeiro Islã) que "treinou" utilizando milhares de sírios muito antes de matar reféns britânicos e japoneses.

Triste aniversário. Os cristãos sírios estão perturbados com os ataques dirigidos pelo Daech (ISIS) contra os cristãos caldeus em Mosul, pelo brutal assassinato de cristãos egípcios na Líbia e mais recentemente pela eliminação dos cristãos assírios na província de Hasaka na Síria. Quem virá em seguida? Os cristãos sírios estão preocupados… Temos medo…

Triste aniversário.  Continuamos sofrendo com a escassez de tudo, desde petróleo, gás, eletricidade, água, remédios e muitos outros produtos de primeira necessidade. Os habitantes de Alepo passam frio com o inverno deste ano, com nenhum outro meio de aquecimento além das cobertas. Sofremos com a escassez de água que fica disponível a cada seis dias.

Triste aniversário. O custo de vida disparou, os preços dos produtos se multiplicaram por 5 ou 10 vezes o preço de antes da guerra… O desemprego é assustador. Segundo as agências da ONU,  70% da população síria vive abaixo dos limites da pobreza.

Triste aniversário. Os sírios estão desesperados. Não encontram maneira de sair da crise. Abandonam o país de forma permanente e sem esperança de retorno. A Síria, e em particular Alepo, está ficando sem seus cristãos. Temos medo de terminar como os cristãos em Mosul … ou como os povos Hassake … ou morrer estupidamente por causa da metralhadora ou de um tiro de algum franco-atirador.

Triste aniversário. Os sírios estão, para dizer o mínimo, decepcionados com a atitude dos governos ocidentais e da comunidade internacional, que fazendo uso de bombeiros piromaníacos que tratam de extinguir o fogo fazendo propaganda em nossa terra através de declarações nas televisões, mas sem coragem de iniciar uma solução política que não atenda a seus interesses egoístas. Estamos consternados com todos os meios de comunicação que mostram ou apenas falam do sofrimento de 300.000 pessoas que vivem nos bairros de Alepo controlados por grupos rebeldes armados, esquecendo-se dos 2 milhões que vivem sob o controle do Estado sírio e sofrem tanto quanto os outros, ou até mais. 

Diante dessas tragédias, decepções, sofrimentos, revoltas, angústia, medo, desespero, o que podemos fazer? … Há algo que se possa fazer? … Por que parar? Por quê? Somos heróis ou idiotas? Haverá ainda esperança para voltar a ter uma vida normal? Uma volta à paz?

 Os habitantes de Alepo que permaneceram são aqueles que dão lições de coragem e razões para a esperança. Quando os vemos fazer qualquer trabalho para sobreviver, levar seus filhos à escola e à universidade apesar da insegurança, sair cada manhã de sua casa sem qualquer garantia de não levar um tiro de um franco-atirador na rua, ficar em casa sabendo que a próxima bomba pode cair em seu edifício, dia após dia confiando apenas em si mesmos e em Deus…. Sim, quando se vê sua esperança e capacidade de recuperação, silenciamos nossas perguntas sem respostas, nós nos animamos e seguimos em frente.

É assim que nós, os Maristas Azuis, continuamos nossos diferentes programas e projetos. 

O projeto “O alojamento para os desabrigados dos Maristas Azuis” continua seu caminho de crescimento. Temos ajudado 57 famílias desalojadas. E se não temos sido capazes de fazer mais é porque nos faltam os meios. Nossas diferentes distribuições mensais continuam com grande generosidade (as cestas contêm, além dos produtos básicos como açúcar, arroz, queijo, geleia, lentilha, azeite… etc., também ovos, carne, frango e leite em pó para as crianças, em um total de 22 produtos por cesta): temos “O cesto da Montanha” para as famílias cristãs desabrigadas em Jabal-Al-Sayde; “O cesto dos Maristas Azuis” para as famílias desabrigadas mulçumanas; e “A cesta da Orelha de Deus” para as famílias que vivem em extrema precariedade sem estar desabrigadas. Além da comida, proporcionamos roupa, colchões, cobertores e utensílios de cozinha. Logo passaremos a distribuir sapatos para todas as crianças. A cada meio dia distribuímos comida quente para 550 pessoas.

O programa “Feridos Civis da Guerra” continua sua missão mediante o tratamento gratuito no melhor hospital de Alepo aos civis feridos por balas ou mísseis, graças à generosidade e voluntariado dos melhores médicos e cirurgiões da cidade e a dedicação das Irmãs de São José da Aparição. Tratamos, em 2 anos, mais de cem casos e resgatado dezenas de feridos por morteiros que se apresentam de forma aleatória. 

Evidentemente, continuamos cuidando das crianças e jovens que são nossa prioridade. Os dois projetos “Aprendendo a Crescer” e “Quero Aprender” atendem por dia mais de 150 crianças em idade escolar e pré-escolar (que não podem ir à escola por diversas razões); “Skill School” (Escola de Habilidades) para os adolescentes; e “Tawassol” para as mães jovens que voltaram depois das férias do Natal. 

Nosso centro de formação – “MIT – também continua em função. Estamos com inúmeras solicitações de participação nas oficinas que organizamos duas vezes ao mês durante um período de 3 dias cada um para 20 jovens adultos. As últimas oficinas abordaram a “gestão do tempo”, “como escrever um informativo”,  “criatividade” e “contabilidade em um programa de computador”. O centro organiza também Conferências mensais que são bastante apreciadas. 

Por último, “Oasis”, nosso centro de formação espiritual para jovens cristãos organiza há alguns anos  retiros ou seminários mensais para jovens interessados e que vem ganhando força. 

 No dia 27 de fevereiro, sexta-feira, celebrou-se uma jornada de formação para 70 voluntários dos Maristas Azuis. Foi abordado o tema do Ano dos Maristas em todo o mundo: “sermos sensíveis à difícil situação dos mais necessitados”, como fez São Marcelino Champagnat com um jovem analfabeto e moribundo, o que o levou a fundar a Congregação dos Irmãos Maristas. Nossos voluntários são formidáveis, sensíveis, dedicados, respeitosos com a dignidade dos outros e vivem a solidariedade do jeito do Evangelho.

O que consola os  “Maristas Azuis” é a rede de amigos que temos no mundo com inúmeras mensagens de amizade e solidariedade que recebemos todos os meses dos 5 continentes. 

Queridos amigos, valorizamos muito sua amizade, sua solidariedade nos conforta, suas doações nos financiam, seu estímulo nos permite avançar e suas orações nos emocionam. 

Há um século, em 1915, foi cometido o genocídio contra armênios e sírios pelos otomanos. Um sacerdote dominicano, Jacques Rhétoré, um grande sábio, escreveu sobre o fato seu testemunho em um livro intitulado “Os cristãos às feras”. Por desgraça, os cristãos em nosso país agora são presas dos selvagens. Esperamos não ser testemunhas ou vítimas de um possível segundo volume desse livro.

De fato, e apesar de tudo, se perdemos um pouco da ilusão, mantemos intacta nossa esperança, porque sem ela nossa fé não tem sentido.

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Alepo, 1 de março de 2015
Nabil Antaki – Pelos “Maristas Azuis”
FaceBook –  MaristesAlep | Twitter –  @MaristesAleppo

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