
Um novo canto a Maria e a nova terra
Começar um retiro mariano para Irmãos idosos (Lisboa, 22 a 28 de agosto) com um canto a Maria dos anos 50, não parece talvez a mais oportuna das coisas. Sobretudo quando se pretende desenvolver a ideia do Capítulo de ?partir com Maria para uma nova terra?. Começar com um canto assim dir-se-ia quase anacrônico, ultrapassado e até mesmo anticonciliar. Anticonciliar não seria. Anteconciliar era com toda a certeza.
Contudo não me pareceu assim tão fora de tempo. Não era tampouco a nostalgia de um passado que irreversivelmente passou. Uma nostalgia assim não ajuda a construir o futuro que é o que realmente queremos. Partir para uma nova terra implica uma visão de futuro. Não era tampouco o fato de que muitos Irmãos cantaram esse canto muitas vezes: recordá-lo poderia ser um passeio à juventude destes Irmãos com todo o entusiasmo apostólico que viveram onde se encontram agora ou em terras missionárias no passado. A verdadeira razão para começar um retiro mariano com um canto dos anos 50 era de outra índole: era precisamente para, nesse passado, encontrar ainda forças que nos empurram para a frente, para o futuro, para o desconhecido, para novas terras. E tudo isso é possível, escutando bem a letra do canto. Anotamos simplesmente o refrão: ?É o mês de Maria/É o mês mais belo/À Virgem querida/Cantemos um canto novo?.É um refrão quase ingênuo, como muitos dos refrães populares que cantamos à Virgem. Mas, ao mesmo tempo, é de uma grande profundidade.
O ponto comum entre esse convite mariano dos anos 50 e o convite do Capítulo para partir para novas terras, encontro-o na última frase do refrão: cantemos a Maria um canto novo. E assim como nos perguntamos muitas vezes o que é a ?nova terra? a que o Capítulo se refere, também nos podemos perguntar o que pode ser esse ?canto novo? sugerido nessa música popular dos anos 50. Não se tratará do mesmo? Ou, pelo menos, não poderá o novo canto a Maria ajudar-nos a descobrir a nova terra? A nossa pesquisa e a nossa vivência espiritual ao longo do retiro quiseram demonstrar isso mesmo: descobrir o novo canto é, ao fim e ao cabo, descobrir ou pôr-se a caminho para a nova terra.
Como fizemos? Tinha pensado simplesmente em resumir os três primeiros dias do retiro numa frase que indicasse os caminhos para uma nova terra. Nessa dinâmica contemplávamos o passado, o presente e o futuro com uma referência sempre a Maria. As conferências desses dias tinham precisamente por título: ?Resgatar o passado? com os textos de Rosarium Virginis Mariae de João Paulo II e Evangelii Nuntiandi de Paulo VI; ?Ver o presente? com textos das Constituições e de Água da Rocha; ?Olhar o futuro? com o documento do XXI Capítulo geral.
Contudo, ao ver a riqueza dos textos bíblicos da Eucaristia dos três primeiros dias do retiro, preferi mudar de orientação e descobrir o que é a ?nova terra?, a partir desses textos. Era o que partilhava com os Irmãos na Eucaristia.
Dia 22 de agosto, festa de Nossa Senhora Rainha. Leituras: Is 9, 1-6; Lc 1, 26-38. Do texto da Anunciação é fácil de compreender que a ?nova terra? é toda a vida que desponta no horizonte. Uma criança que nasce é sempre sinal de novidade. Sinal absoluto do amor de Deus para os homens é também sinal de esperança para uma humanidade renovada. Como? A primeira leitura fala também de um ?menino que nos é dado?. Estamos sempre diante da novidade de Deus. E esse menino vai ser fonte de luz, de alegria, de justiça e direito em favor de todos. O mote está dado: também nós seremos sinal desta nova terra cada vez que nos abrimos ao Espírito de Deus. Ele engendra em nós o próprio Cristo e dá-nos a força para proclamá-lo. Ao proclamá-lo construímos o mundo descrito por Isaías. A nova terra é aquela que criamos à nossa volta porque o Espírito de Deus está em nós, porque a sua Palavra nos habita. Cristo torna-se então aquele em quem vivemos e respiramos. Assim ?cristificados?, nós somos transformadores do mundo. Somo artífices de uma terra nova.
Dia 23 de agosto, festa de Santa Rosa de Lima. Leituras: 1Tes 2, 1-8; Mt 23, 23-26. Mateus diz-nos claramente que a ?nova terra? é o homem transformado, renovado a partir de dentro. É o homem da interioridade e da intimidade com Deus. E quais são as consequências de um homem assim transformado por dentro? Como vai torna-se multiplicador dessa ?nova terra?. Ainda aqui o texto não podia ser mais claro: o homem que vive na intimidade de Deus é um construtor da justiça entre os homens; torna-se um testemunho excelente da sua misericórdia; na sua fidelidade espelha-se a fidelidade de Deus. São Paulo acrescenta a essas ideias de Mateus duas outras que encaixam muito bem dentro da espiritualidade marista: por um lado, a coragem de anunciar o Evangelho mesmo nas circunstâncias mais difíceis; por outro lado, a amabilidade e a bondade que se exprimem como um amor de mãe que toma conta dos próprios filhos. Isso recorda-nos a ?dimensão feminina? da nossa espiritualidade tão presente em Água da Rocha.
Dia 24 de agosto, festa de São Bartolomeu, apóstolo. Leituras: Ap 21, 9b-14; Jo 1, 45-51. Há dois elementos, um de cada leitura, que nos dizem o que pode ser a ?nova terra? que todos sonhamos e queremos. E, certamente, que existe uma relação entre elas. A leitura do Apocalipse fala da ?Jerusalém resplandecente da glória de Deus?. E o salmo responsorial, Sl 144, acrescenta: ?os teus fiéis proclamam a tua glória?. Foi o que fez Bartolomeu e todos nós somos chamados a fazê-lo. A ?nova terra? é a criação de um mundo novo onde resplandece a glória de Deus, graças ao trabalho dos apóstolos de todos os tempos. E como podemos fazer resplandecer no mundo a glória de Deus? A segunda leitura dá a resposta com toda a limpidez: vivendo na verdade, tal como Bartolomeu de quem Jesus diz: ?Aqui está um israelita em quem não existe falsidade?. A ?nova terra? então é viver na verdade. Não há dúvida, na medida em que viemos na verdade dizemos ao mundo a glória de Deus. Bento XVI disse recentemente a um grupo de intelectuais de Espanha, reunidos no Escorial para o escutar, esta frase lapidar, mas belíssima: ?A verdade é a beleza de Deus?. Ao viver na verdade, dizemos ao mundo não só a glória de Deus, mas também a sua beleza. E o mundo está bem necessitado delas. A ?nova terra? é torná-las presentes no mundo. Mesmo à custa da própria vida. São Bartolomeu, o Natanael do Evangelho, também nos indica o caminho.
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Irmão Teófilo
Coordenador do Projeto Ad Gentes
Lisboa, 29 de agosto de 2011