2022-10-12 BRAZIL

Relatos de Missão Marista: uma breve experiência missionária entre crianças e adolescentes no altiplano boliviano

Ir. Donavan Machado – Brasil Sul-Amazônia
Centro Marista de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

Existe um álbum musical intitulado “Traigo un pueblo en mi voz” cantado por Mercedes Sosa, uma das maiores vozes da América Latina, e que o mundo teve a bênção de ouvir. O conteúdo das canções traz um pouco da história latino-americana, em especial o lamento de um povo marcado por sofrimentos e injustiças, porém carregados de coragem e de uma fé inquebrantável com vistas a um futuro melhor, no qual as gerações futuras poderão desfrutar da vida em uma terra justa e acolhedora, lugar onde a humanidade será cuidada e protegida. Para a cultura Guarani, esse mundo é conhecido como “Terra sem Males”. Para os Povos Andinos, essa mesma proposta de mundo é chamada de “Sumak Kawsay”, que, no idioma Quéchua, significa “bem-viver”. A “Terra Prometida” ou as “terras que emanam leite e mel” provenientes da cultura judaica, como também o “Reino de Deus” estabelecido por Jesus Cristo, não fogem dos conceitos apresentados pelas epistemologias dos povos originários deste continente. Não venho, entretanto, escrever sobre culturas e teologias ameríndias, mas, parafraseando Mercedes Sosa, “traigo un pueblo” nas linhas que seguirão neste artigo.

Se recorrermos à história da América Latina e pudéssemos escolher um capítulo para a infância e outro para a adolescência, com certeza encontraríamos poucas páginas, tornando difícil um aprofundamento sobre o assunto. Novas percepções e modelos de infância, no entanto, foram surgindo, antigos conceitos foram cedendo lugar às novas descobertas demonstrando que o fenômeno da infância e da adolescência são, no mínimo, plurais e dinâmicos. Percebi isso quando tive a oportunidade de trabalhar com crianças e adolescentes das zonas rurais e urbanas, numa breve experiência missionária na cidade de Cochabamba, Bolívia.

É importante mencionar que o país, nos últimos 14 anos, passou por um processo de transformação social muito grande. Até o ano de 2006, a Bolívia era considerada como o país mais pobre da América do Sul, com cerca de 34,6% da população vivendo em situação de pobreza. Esse número é muito alto para um país cuja população, naquele mesmo ano, não chegava a 10 milhões de habitantes. Quase 4 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza, em uma miséria extrema. Nessas condições de desamparo e total desumanidade, muitas crianças e adolescentes eram colocadas em condições de trabalho sub-humanas. Muitos relatos ouvi de parentes de crianças que trabalhavam nas mineradoras do altiplano boliviano, em especial na cidade de Potosí. Para o trabalho nas minas, as crianças (devido ao seu tamanho), eram enviadas em túneis inacessíveis para os adultos, lugar que passavam horas em condições extremamente insalubres e perigosas (sem ventilação de oxigênio, escuridão, úmido, grande risco de soterramento etc.) para no fim da jornada ganhar alguns centavos de pesos bolivianos. Importante mencionar que a expectativa de vida dessas crianças e adolescentes era absurdamente baixa. Muitas delas não chegavam aos 18 anos de idade em razão das doenças pulmonares que acabam adquirindo pela constante exposição aos “males de la mina”.

As crianças e adolescentes que viviam nas zonas rurais próximas às grandes cidades também padeciam de muitas dificuldades. Por não haver escolas que pudessem oferecer todo o ciclo escolar, muitas delas acabavam desistindo de prosseguir nos estudos, restando somente o árduo e extenuante trabalho no campo. As famílias campesinas mais pobres, quando passavam por tempos de grave fome e penúria, migravam para as cidades e sobreviviam nas ruas com a esperança de receber esmolas ou doações de algum “bom samaritano” urbano. Até o ano de 2006, o fenômeno do êxodo rural foi um grande problema para a administração das cidades, pois muitas delas passavam a abrigar milhares de pessoas em questão de dias, inclusive crianças e adolescentes. Como o Estado não dava conta de tamanha demanda, muitas congregações religiosas tiveram a Bolívia como lugar de missão. Nesse sentido, a Congregação dos Irmãos Maristas acolheu o país para também poder exercer o carisma legado por São Marcelino Champagnat e ajudar o povo boliviano na construção de seu país, tendo como horizonte de sentido a Educação.

Na cidade de Cochabamba, os Irmãos Maristas estão presentes desde a década de 1970. Na época, construíram sua comunidade na região mais pobre da cidade e, com o tempo, fundaram 4 unidades educativas: o Colégio Marista; o Colégio Nossa Senhora do Pilar; o Colégio Santa Mônica; e a Escola de Educação Infantil Santa Maria de los Andes. Atualmente, todas as unidades educativas citadas são conveniadas ao governo boliviano, administradas pela congregação e gratuitas. Importante mencionar que, após o ano de 2006, o país investiu largamente em programas sociais de resgate à população mais carente, como também na valorização à cultura dos povos originários que, por séculos, foram hostilizados e jogados à marginalidade por uma sociedade colonialista. Além da formação na educação básica e ensino técnico, a Pastoral Juvenil Marista é bastante reconhecida por seu trabalho na formação humana e cristã de crianças, adolescentes e jovens.

Porém, gostaria de relatar uma experiência que pude viver em um momento de agitação política na Bolívia, em 2019, e uma pandemia avassaladora de Covid-19. No Natal de 2019, fui enviado com mais dois irmãos para uma missão de 7 dias numa comunidade chamada Larati Grande, nome que também batiza o grande lago que abastece o vilarejo no alto da montanha, cerca de 4 mil metros de altitude. Em razão das atividades escolares encerrarem nesse período, não resta outra opção para as crianças e adolescentes da comunidade senão o trabalho no campo. Para as meninas, além das atividades agrícolas, ficam sob suas responsabilidades o cuidado da casa e dos irmãos mais novos. Ficamos alocados em uma das escolas do povoado, o que nos possibilitou um espaço para acolher todos que viessem participar de nossas atividades. Importante dizer que naquele povoado havia mais uma escola e um posto básico de saúde. Um dos líderes comunitários nos dizia que aquelas escolas e o posto de saúde foram obras recentes e que possibilitaram uma melhor condição de vida à comunidade.

Para que aquelas pessoas pudessem frequentar a escola ou serem atendidas no caso de urgência médica, “descer” até a cidade era a única opção. Isso era inimaginável, pois nenhum dos moradores possuía automóveis próprios, o meio de transporte que servia a comunidade era precário, como também a distância entre a cidade e o povoado era grande. As escolas e o posto de saúde foram a salvação daquela comunidade, disse o líder comunitário.

Realizamos oficinas de pintura, canto, esportes, e uma noite fizemos um momento de espiritualidade com todas as famílias na capela da comunidade. Entre 15 crianças e adolescentes vinham todos os dias até a escola em que estávamos para participar das atividades. A cada dia que passava, a felicidade das crianças era contagiante e muitas vezes emocionante. Um desses momentos, que inclusive me causou aquele “nó na garganta”, foi quando recebemos Sorayda, uma adolescente de 14 anos que veio também exercer o seu direito de brincar junto com seus amigos e amigas da comunidade. Na ausência dos pais, ela cuidava da casa e de seus 3 irmãos mais novos, um deles bebê de colo. Nos primeiros dias, víamos somente os seus irmãos participando das atividades, até que insistimos com eles em convidar a irmã para também participar das atividades e das brincadeiras.

No dia seguinte, quase no final da manhã, vinha ela carregando em suas costas o seu irmão mais novo, envolvido por um aguayo já bem desgastado pelo tempo. Em nenhum momento, ela tirou o irmãozinho de suas costas. Até no jogo de basquete ela carregava seu irmão. Fizemos uma pausa para o lanche e reunimos todos num verde gramado que envolvia a quadra de esporte. Trouxemos o lanche e ali demos início ao nosso grande “banquete”. Esse foi o único momento em que Sorayda retirou o seu irmãozinho de suas costas e sentou-se no gramado para lanchar junto com seus amigos. Entre risos e conversas em quéchua e castelhano, notei o silêncio e um olhar cansado, por vezes perdido no horizonte, daquela adolescente de 14 anos que via por findar aquele pequeno momento no qual pôde viver um pouco daquilo que deveria ser parte do seu cotidiano: brincar, aprender, divertir-se, descansar, alimentar-se bem etc. Quando terminamos o “banquete”, Sorayda ajeitou cuidadosamente o seu irmão no aguayo, amarrou-o em suas costas e pôs-se a caminho de casa.

Quando me perguntam “o que mais te marcou durante o tempo que viveste na Bolívia?”, a experiência junto à comunidade campesina, com certeza, possui um destaque sobre todas as outras. Ali pude (re)conhecer a histórica luta por reconhecimento e direito de um povo que por centenas de anos foi vítima de um sistema político e econômico que lhes quitou a possibilidade do “bem viver”. Dentre as vítimas de todos os males provocados por essa estrutura socioeconômica que exterminou e subjugou centenas de povos às condições mais desumanas, degradantes e que ainda hoje sustenta parte desse antigo regime, as crianças e os adolescentes foram os mais atingidos porque lhes roubaram a esperança de um futuro com dignidade, respeito e acesso aos seus direitos fundamentais. A lembrança daqueles olhos tristes e cansados, consequência das circunstâncias impostas em sua vida, não se limita àquela adolescente boliviana. Sorayda é a imagem viva de toda a infância e juventude latino-americana que sofre no abandono, na violência, no cerceamento de direitos básicos, mas que resiste na luta por dignidade e justiça.

Ao finalizar esse breve relato, recordo-me de outra canção de Mercedes Sosa sob um título que vem ao encontro desse assunto: “¿Será posible el sur?”. Penso que essa é uma pergunta que deveríamos fazer todos os dias. A faculdade do pensar, do indagar, de suspeitar e sugerir é o que nos identifica enquanto seres humanos. Abandonar esse “dom” é seguir pelo caminho da desumanização. É por isso que, com a fé e a esperança que carrego, arrisco dizer que “¡sí, es posible el sur!”. É possível garantir a dignidade e a possibilidade de um futuro para as novas gerações. É o nosso dever enquanto cidadãos assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à dignidade, ao respeito e tantos outros valores e direitos elencados no art. 227 da Constituinte Brasileira de 1988. Vale dizer, sob uma outra “lente”, que também somos parte desse mesmo povo e, por isso, temos por vocação, enquanto filhos e filhas de Deus e da Mãe-Terra, garantir e cuidar do futuro de nossas crianças e adolescentes. Somente assim vislumbraremos a possibilidade de viver o Sumaq Kawsay e participar do Reino de Deus onde todos e todas possam usufruir da vida, e da vida em abundância.

____________

Ir. Donavan Machado – Irmão Marista integrante do Centro Marista de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Província Marista Brasil Sul-Amazônia

 

PREV

Marista e Prefeitura de Mendes: parceria em p...

NEXT

Star Messenger 06...