2014-06-03

50 anos da ditadura civil-militar ? Reminiscências de um Irmão Marista

class=imgshadowDesde os tempos do Postulado, em Brodósqui, e em seguida o Noviciado, começamos a entender a política e a manifestar opiniões sobre temas a ela relacionados. A isso nos movia, sobretudo, o novo tempo que se iniciava, tanto em termos políticos, sociais e econômicos, como eclesiais e da vida religiosa consagrada. O contato com os documentos do Vaticano e a participação em eventos fora dos claustros, contato com o novo tipo de literatura, mergulho em realidades sociais através de missões, catequeses, estágios; cursos e encontros realizados junto com leigos e leigas, era um novo horizonte que se abria. O Ir. Gilberto Rocha, entre outros, era um Irmão que nos introduzia nesse novo cenário.

Já no Escolasticado, com companheiros muito criativos, foram praticamente três anos de alegria comunitária, pastoral, mística e cultural. Ali acompanhamos a Primavera de Praga, comandada por Alexander Dubcek, abortada pelos tanques soviéticos. Já éramos bastante previdentes, pois a linha dura do governo tinha sempre um dedo-duro nos eventos eclesiais. Ficamos chocados com as notícias vindas de muitos lugares, como de Ribeirão Preto, onde uma Irmã foi torturada e, segundo parece, engravidada, recebendo guarida no México. Ela era promotora de uma Escola Nova. Mais incentivos recebíamos nessa época com o governo paternal e pastoral do Ir. Basílio Rueda. Nós nos aproximávamos de tudo o que era considerado “subversivo” pelo sistema: pessoas, livros, eventos, expressões, etc. Certa noite, fiquei até tarde para assistir a um debate entre Delfim Neto – Ministro da Fazenda – e o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara. O Governo desejava, a todo o custo, boxear o arauto da democracia, da solidariedade, dos direitos humanos, tido pelo Regime como comunista. O Ir. Luiz Silveira nos incentivava muito nesse momento, juntamente com seus auxiliares Sulpício José e Gilberto Rocha.

Destinado a trabalhar na Grande Metrópole cosmopolita, ingressei no curso de Ciências Sociais, na PUC, cenário muito visado pela ditadura civil- militar. Todo cuidado era pouco. Os/as professoras eram bem críticos do sistema. Por vezes eu levava, com cuidado, algum material mais ousado para a professora de Antropologia, como o documento de Dom Pedro Casaldáliga “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Casaldáliga, odiado pelo Regime, foi dos primeiros a denunciar o
trabalho escravo na Amazônia, local onde se instalavam grandes empresas agropecuárias, atropelando o meio ambiente e os nativos. É dessa época a perda de terras dos Xavantes, luta retomada nos últimos anos e apoiada por Casaldáliga, até o Supremo decretar a saída daquelas empresas e a devolução das terras aos seus donos. O bispo foi novamente ameaçado de morte.

Nossa turma não quis formatura, preparamos apenas uma apresentação teatral de “Morte e Vida Severina”. Em cima da hora, chegou aviso de que a polícia tinha vetado a apresentação, pois essa obra era considerada subversiva. Assim foi a nossa formatura. Mas outras turmas desse tempo também fizeram formaturas bem mais humanizadas do que as extravagâncias de hoje em dia. No Recife de Dom Hélder, uma turma do curso de Direito resolveu utilizar todo o dinheiro que poderia ser gasto nas festas de formatura, num mutirão de construção de algumas casas para os pobres. Eram jovens que não tinham o voto de pobreza, como jovens maristas que hoje celebram a profissão dos Votos com festas que escandalizam os pobres. Vivíamos sob o regime do terror com notícias frequentes de mortes e desaparecimento de pessoas. Acompanhávamos aflitos as visitas que Dom Evaristo Arns fazia aos detentos, entre os quais estavam os frades dominicanos. A notícia da morte (assassinato) do estudante universitário Alexandre Vanucchi Leme mobilizou uma multidão de universitários. No sétimo dia fomos, sobretudo estudantes da PUC e USP, para a missa na Catedral. Estava superlotada. A homilia foi proferida por Dom Paulo, que apelou ao Regime para que devolvesse o corpo do jovem a seus pais, como Pilatos fizera com o corpo de Jesus, entregando-o a José de Arimateia para uma sepultura digna. Fomos todos fichados pela mídia, um por um. Na saída da Catedral encontramos a Praça da Sé transformada em praça de guerra com todo o tipo de milícia e armamento.

A polícia rondava sistematicamente o prédio da PUC no bairro Perdizes, onde também se localizava a paróquia universitária e o convento dos dominicanos. Os estudantes, para provocar um pouco os milicianos, fizeram um monte de pedra e cobriram com jornal, insinuando algo. Um policial deu um chute naquilo, e é claro que deve ter sentido algo. Foi motivo para haver corre-corre. A população procurava de certa forma se vingar da truculência do regime criando um sem-número de piadas bem- humoradas, como aquela do Presidente militar que fora inaugurar um navio. Antes de ser lançado ao mar, há o costume de batizá-lo quebrando, contra o casco do navio, uma garrafa de champanhe atada numa corda. Como o Presidente não sabia o que fazer com a garrafa que o anspeçada lhe dera, esse sussurrou- lhe ao ouvido: “Excelência, quebre no casco”, e o presidente, levantando o sapato para trás, quebrou a garrafa.

Nós nos inspirávamos em muitos Irmãos batalhadores, como os Irs. Antonio Cecchin Neto, Joaquim Panini e numa nuvem de testemunhas da Vida Religiosa Consagrada, sobretudo feminina. Eram anos de profecia, de testemunho, de novos ideais e paradigmas. As canções que eram sistematicamente repetidas eram a de Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não falei de flores”, proibida pelo Regime, “Disparada”, de Jair Rodrigues, as de Elis Regina, e outras.

A América Latina vivia então uma ditadura “generalizada”. Por esse tempo, o Ir. Panini teve de correr muito na praça onde está o La Moneda, em Santiago, pois estava lá no dia em que Pinochet bombardeou o palácio, com a consequente morte do presidente Allende. Ele me trouxe uns fragmentos que ajuntou das janelas destroçadas do palácio que as guardei por certo tempo em São Paulo. Foi naquele cenário que o Ir. Nilso Ronchi foi detido e, por pouco, não foi fuzilado.

Realizávamos muitas manifestações de solidariedade para com os povos oprimidos por esses governos de violência. Em Manaus, caminhamos muito numa noite penitencial comungando com a Igreja e o povo da Nicarágua.

Nos inícios dos anos 70 utilizávamos na Catequese o livro do Ir. Cecchin “Rumo à Terra Prometida”, considerado subversivo pelo Sistema. Passarinho, Ministro da Educação, foi à TV denunciar a obra do Irmão e execrá-la das salas de aula.

Em Brasília, os Irmãos Zeferino Zandonadi e depois Egídio L. Setti, diretores, passaram por maus momentos com a vigilância militar e o sumiço de professores. Num sete de setembro, no desfile das escolas, o Marista apresentou as bandeiras dos países que tinham relação diplomática com o Brasil. Em dado momento, os policiais invadiram a rua e arrancaram a bandeira da União Soviética dos alunos.

Tínhamos especial aversão ao magno torturador Sérgio Fleury, que lembrava aquele do tempo de Vargas, Filinto Strubing Müller, torturador de Olga Benário, mulher de Prestes. No Rio de Janeiro, frequentando um sebo, encontrei dentro de um livro um cartão assinado por ele, Müller.

Não dávamos crédito à notícia da imprensa de que Vladimir Herzog se suicidara na prisão e de que terroristas tinham realizado um atentado no Riocentro. Andar com algum livro da “Cortina de Ferro” ou da “Cortina de Bambu”, era perigoso, você era suspeito de ser comunista.

Ao lermos os jornais, já sabíamos que quando havia uma receita de culinária, ou uma poesia na página de rosto, é porque uma notícia havia sido censurada.

Gostávamos de ler a pequena imprensa, ou alternativa, como O São Paulo, Pasquim, Movimento Operário e a Revista SEDOC que publicava muita coisa vinda das bases, dos setores oprimidos.

Hoje me pergunto: por que sobrevivi, especialmente como religioso? Talvez tenha sido porque procurei sempre apoio na Comunidade, no Carisma de Marcelino e nas fontes Evangélicas e Maristas, por não me deixar envolver pelo consumismo, por idolatrias e estar sempre disposto à Missão.

___________
Ir. Sebastião Ferrarini

PREV

Revista Vida Nueva: Siria grita al mundo: ?Ne...

NEXT

Social - Equipo de pastoral social Ibérica...