Entrevista com Marino Primiceri, irmão das crianças de rua, em Goma

28/9/2006

Fotografias

?Iniciamos a partir do nada, a partir da própria rua, porque não tínhamos nada?, me conta este irmão de origem italiana, que muito jovem partiu com seus pais para a Bélgica, onde conheceu os maristas, professou depois de haver feito o noviciado, trabalhou quatro anos na Bélgica e partiu para o Zaire, atual R. D. do congo, como missionário. Pertence à Província da Europa Centro-Oeste. Atualmente, trabalha com as crianças de rua na cidade de Goma. Visitou a Casa geral dos irmãos, em Roma. Trouxe algumas fotografias que mostram uma preciosa reportagem de suas andanças por Goma. Ele transpira ternura. De cada pessoa que aparece nas fotos, ele conta sua história, suas anedotas. Mostra em uma fotografia: ?Este menino foi salva de uma morte certa. Tive que percorrer vários hospitais e insistir com vários doutores…?.

AMEstaún. Este trabalho com as crianças de rua é uma experiência de anos.
Marino. Na verdade, o trabalho com as crianças de rua não contam os dias nem as horas nem os anos de trabalho, porque com elas não se trabalha com um horário fixo de oito da manhã às quatro da tarde, pois temos que estar disponíveis para eles as vinte e quatro horas do dia. Na realidade, a vida dos meninos de rua começa pela tarde, porém os problemas surgem em qualquer momento, o que quer dizer que se contabilizarmos as horas de trabalho durante os 36 meses que estamos com eles pode resultar no falso cálculo. A jornada é dupla e o tempo vivido intensamente.

Porém, você tem feito um longo caminho ao lado deles
Sim. Temos feito um longo caminho, porque é um caminho longo, duro com um grupo bastante significativo. São mais de 650 meninos e temos contato com mais de 200 famílias. Temos procurado as famílias dos meninos de rua porque entre eles é quase impossível que haja um familiar mais ou menos próximo que vive perto dele.

Em que situação se encontra a realização
Cometamos com os padres salesianos que procuravam alguém que quisesse trabalhar com ele e me pediram para colaborar com eles nesse trabalho, mesmo que não tivesse feito isso nunca.

Como foi o início?
Na realidade iniciamos a partir do nada, a partir da própria rua, porque não tínhamos nada. Iniciamos de algumas boas relações com as pessoas. O trabalho foi iniciado em um mercado de rua de Goma, que se chama ?Virunga?, onde iniciamos alguns contatos com os meninos de rua que andavam sem fazer nada, não tinham trabalho, que se ocupavam em roubar. Nesse primeiro contato lhes disse: Não tenho nada para oferecer-lhes, porém, podem contar com minha amizade. E ofereço-a desinteressadamente a vocês. E eles compreenderam que eu não estava ali para dar-lhes alguma coisa, como fazem alguns organismos que oferecem comida e roupa. Disse simplesmente a eles: nossa relação consiste em estar com vocês ali onde vocês estiverem, porém não viemos para dar coisas; não temos nada nas mãos para oferecer. A única coisa que oferecemos a vocês é aquilo que pode enriquecer a sua personalidade; reconhecemos seus valores, seus problemas, porém vocês podem contar com nossa amizade no momento em que acharem oportuno.

Recorda ainda aqueles primeiros meninos que se aproximaram de você?
O primeiro se chama Janvier, porém existe outro que se chama Gahínja. E esse é atualmente o nome dessa organização. Casa Gahínja, que durante três anos foi chamada ?Universidade do mercado?, porque não era universidade para nada; a escola era uma barraca do mercado onde chovia, onde havia água, onde havia barulho. Porém, desde o início a chamamos com o nome de ?Universidade do mercado?.

(Contemplo a foto que tenho entre minhas mãos. A fotografia me encanta; concretamente esta fotografia). O que lhe disse esse menino nesse primeiro momento?
Este menino era chefe de um grupo, um chefe de setor, o que quer dizer que era responsável de uma zona da cidade onde ele era o chefe. Ele teve alguns problemas com o lugar onde foi acolhido pelos padres salesianos; havia roubado e desaparecido, porém pudemos recuperá-lo e atualmente estuda; aprendeu um ofício, tirou a carteira de motorista, e entendeu que não me devia agradecer, mas dar aos outros o que havia recebido.

E, tem sido um dos seus colaboradores?
Sim. Aqueles meninos que encontramos na rua e descobrem o que estamos fazendo são os melhores colaboradores. No momento está prestando um serviço que nós mesmos não poderíamos realizar.

Você é diplomado em inglês, francês e história pela Escola Superior de Arlon (Bélgica), e se dedicou a ensinar. Para você, como irmão marista, este encontro com os meninos de rua, significou uma conversão, uma mudança importante na sua vida?
Finalmente entendi um aspecto do carisma de Champagnat. Trabalhei como professor, como diretor de escola e, finalmente, me dei conta de isso era somente um aspecto do carisma de Champagnat. Ele era um homem aberto a tudo e a todos… e me pareceu que minha Congregação talvez tivesse esquecido isso. Atualmente não me sinto mais capaz de ser professor; minha vida é na rua, junto aos meninos.

Existem outros irmãos que partilham com você esse projeto em Goma?
Tenho que explicar um pouco o que aconteceu. O Provincial soube desde o início o que eu estava fazendo e se deu conta de que não buscava dinheiro nem havia vantagens de ordem material por fazer esse trabalho. Porém, mantinha alguma reticência. Então o convidei para vir e ver o que se estava fazendo. Não aceitou de imediato, porém insisti: ?Venha e reflita sobre sua primeira impressão?. Ele veio uma segunda vez e viu que esse trabalho era para mim um caminho novo. Escutou a opinião de diversas pessoas e, sobretudo, viu o que havia sido feito com seus antigos alunos que haviam estudado magistério, sete dos quais os chamei para colaborar comigo.

E a obra está consolidada?
Não temos procurado resultados numéricos, senão cada pessoa, cada problema, cada família. Temos procurado fazer um trabalho no nível da realidade, não para as estatísticas.

Porém, existem números?
Sim, claro que existem números. Quando iniciamos a colhida eram 24 meninos que dormiam no chão. Perto do Natal já eram 48 pessoas. Dormiam no chão que ficava molhado quando chovia. Quando começamos a reuni-los para estar juntos, nos demos conta de que alguns de nós deveriam permanecer com eles durante a noite. Porém, o irmão tinha que dormir na comunidade.

Você colabora com os padres salesianos. Isso quer dizer que esta obra é uma obra da Igreja.
Este é um outro sinal importante para mim. Não somente temos colaborado com os padres salesianos, mas também têm participado as irmãs Brancas, a Fraternidade javeriana e leigos. São cinco ou seis grupos que estão colaborando. Os salesianos me disseram em alguma ocasião que sou mais salesiano do que marista. (Não pude evitar um sorriso de complacência pelo elogio).

Cite algumas características da obra
Não fomos buscar os meninos para levá-los para fora da cidade. Fomos ao lugar concreto onde eles estavam. Não os levamos para um lugar onde eles não queriam ir, mas fomos ao lugar onde eles queriam estar. Nós é que fomos ao lugar onde eles estavam, ao invés deles virem aonde nós estamos. Posso contar as histórias de outros organismos que os levaram para lugares criados para os meninos de rua, porém eles fugiram e voltaram para o mercado.
Eu tenho dito aos meus colaboradores: ?Não tenham medo de que nossos meninos partam com outras organizações; neste ambiente são mais amados do que em nenhum outro lugar?. Não nos apresentamos como doadores de coisas, mas como gente que oferece sua amizade, que pode falar com eles, que reconhece o valor deles, que conhece suas dores, que reconhece que não são pobres e miseráveis, mas que têm um valor, uma dignidade, orgulho e nobreza de alma. Reconhecer que não são somente pobres mal vestidos ou famintos, mas que têm seu próprio valor e uma dignidade. Para essa gente, a dignidade e o orgulho de ser alguém é mais importante que ser o chefe.

E as pessoas os vêem com bons olhos?
Quando alguém faz coisas boas sempre encontrará a contradição que faz parte da mesma realização. Quando se faz algo valioso se encontra pelo caminho alguém que sente inveja do que o outro faz e tentará pôr areia no caminho. Preocupar-se ou promover essas pessoas em concreto, procurando trabalho para elas, por exemplo, nos põem em oposição com outros grupos sociais, concretamente com a polícia. Eles suspeitavam de nós. Suspeitavam que estivéssemos preparando jovens para a guerra. Alguns deles nos vigiaram, nos seguiram, nos controlaram para saber que estávamos fazendo com esses jovens. Quando se deram conta de que não estávamos preparando um exército nessa zona de guerra ? porque é zona de guerra -, mudaram de reflexão: ?Vocês ajudam esses bandidos, esse ladrões e não nos ajudam, que somos pessoas honradas?. De tal maneira que essas pessoas põem dificuldades, porque não as ajudamos. Porém, esse problema se chama corrupção. O fato de não compartir com ele o que temos é motivo para que eles não dos dêem seu apoio quando temos dificuldades.

Então, para poder fazer um intercâmbio…
A escola iniciou com alguns que queriam um pouco de alfabetização. Era lhes dado um pouco de polenta que tínhamos recebido de organismos internacionais, porém nosso discurso era outro. Não posso me aproximar deles dizendo: ?Eu sou o salvador de vocês. Se fizerem o que eu lhes digo, dou-lhes isso ou aquilo, e se não fizerem, não lhes dou?. Com essa atitude não se pode esperar bons resultados. Não temos dado somente o que comer, mas também antes de dar o que comer limpamos a cozinha desses meninos que usam como pratos as latas de conserva. Antes de dar de comer, nos aproximamos das pessoas deles. Ao contrário de outros organismos que lhes dizem: ?Venham conosco e lhe daremos de comer?. Não! ?Venho comer contigo e depois, se quiseres, podes vir comer comigo. Se vieres comer comigo te convido a ir à escola durante uma hora, e te ajudarei a limpar o local, etc?.
Assim teve início essa mudança. Se tu tens necessidade de mim, porém não de dou a saber, e muito menos te digo isso. Em troca, eu tenho necessidade de ti, da tua amizade, mesmo que não façamos nada, mas simplesmente estar juntos e conversar.

Como é a vida espiritual desses meninos, dessas pessoas?
A vida espiritual desses meninos é algo que surpreende, porque quando pensamos que são gente da rua, então imaginamos que eles não têm tempo para rezar, para interiorizar o evangelho que estamos levando a eles, porém isso é falso. Primeiro, ninguém engana esse meninos. Diante deles você não pode se apresentar com sendo bom se você não o é, e tão pouco pode esconder se é mau. Você não pode dizer a eles: vamos à missa ou façamos essa oração; o que eles captam de imediato é se você fala a verdade e diz o que de verdade vive.

O melhor desta experiência
A relação de amigo ? amigo chegou a ser algo muito forte, muito semelhante a uma relação de pai-filho. Esta tem sido uma forte experiência para mim. Tenho tido a sensação que tem uma mãe quando seu filho chora, grita ou lhe dá alegria. E não apenas eu, Marino, mas também aqueles que trabalham comigo, todos aqueles que trabalhamos juntos. Tenho tido a satisfação de realizar a missão de um pai ou de uma mãe que esses meninos e essas meninas não têm.

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O irmão Marino foi entrevistado para este Boletim em outra ocasião. Você pode ver a entrevista no Boletim n. 157, agosto de 2004.

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