O Irmão João Gutemberg é entrevistado pelo Irmão Lluis Serra

15.01.2003

MARISTAS NA AMAZÔNIA

O Irmão João Gutemberg Mariano Coelho Sampaio, 40 anos, é o Superior do Distrito Marista da Amazônia, criado no passado mês de julho, dependente da Província Marista do Rio Grande do Sul, Brasil e integrado por 35 Irmãos. Os maristas, presentes em dez localidades dessa região – que é o maior pulmão do planeta – ali encarnam o carisma de São Marcelino em favor da educação e da evangelização das crianças e jovens.

Toda a humanidade sabe que esta região onde você vive é o maior pulmão e tem a maior reserva de água doce da Terra. Conte-nos maravilhas da Amazônia…
Também eu, que sou da Região, fico fascinado quando viajo em visita aos Irmãos cujas comunidades se encontram ao longo dos Rios Purus, Juruá e Solimões. São nomeados entre os maiores rios do planeta. Faço essas viagens através de diferentes meios de transporte, como avião pequeno e grande, barcos de médio e grande porte. São horas e dias de viagem por caudalosos rios. O Rio Amazonas recebe águas de 1100 afluentes correspondendo a 1 quinto da água doce do planeta. A vegetação é exuberante. Maravilha-me ver a abundância da pesca e a riqueza da fauna. Estima-se que sua flora abrigue até 30 milhões de plantas diferentes, das quais apenas 30 000 espécies já foram estudadas, o que já representa 10% das plantas do planeta. O clima é quente e úmido com chuvas abundantes durante seis meses ao ano.

No entanto, o que está acontecendo quanto ao desmatamento, a especulação e empobrecimento de suas enormes riquezas?
Até a década de 1970, a Amazônia estava sendo bem preservada. Os povos que aqui viviam respeitavam muito mais a natureza. Nas últimas décadas a Região foi invadida por levas de imigrantes vindos sobretudo do Sul do país. A descoberta de minérios atraiu investimentos e gerou muitos problemas sociais. A urbanização foi acelerada e de maneira desorganizada. A extração dos recursos naturais não previu a sua reposição ou controle na exploração. O que também gerou o desmatamento de grande área foi o comércio da madeira para o exterior e a implantação de um sistema de desenvolvimento agrícola e agropecuário inadequado para a Região, cujo solo argiloso ou arenoso é impróprio para tal. Outro grande problema é a especulação imobiliária e ideológica quando grandes áreas foram e estão sendo compradas pelo capital estrangeiro, o que compromete a soberania de nossos povos. Estamos lutando para patentear a nossa rica variedade de plantas medicinais cobiçadas pelo mercado farmacêutico.

Você não acredita que o mundo está tomando a Amazônia por bode expiatório de modo que vocês devem respeitar a natureza como os demais não o fazemos em nossos próprios países?
Quando ouvimos a opinião internacional sobre a Amazônia, até parece que aqui somente existe a natureza sem a população humana. É claro que os povos da floresta também necessitam do desenvolvimento. Por isso não podemos estar sempre barrando o desenvolvimento somente para deixar a natureza intacta. O que está em jogo é o justo equilíbrio: preservação e desenvolvimento. Felizmente está surgindo entre nós uma nova consciência política e econômica que já procura por em pratica o chamado desenvolvimento sustentável. Esse desenvolvimento, além do mais, prevê o aproveitamento dos próprios recursos naturais sendo transformados, repostos e comercializados aqui mesmo, gerando empregos, protegendo a natureza, valorizando o homem da floresta e evitando a importação de modelos desenvolvimentistas impróprios para a região. Claro, para todos esses projetos temos sempre necessidade das novas tecnologias. O povo da Amazônia não pode viver isolado do progresso. Mas esse progresso deve ser incrementado respeitando a cultura que lhe é peculiar.
Do ponto de vista internacional, lamentamos o pouco caso de países desenvolvidos que não fizeram avançar os projetos ecológicos propostos nas conferências de Kyoto, Rio e África do Sul.

Fala-se em indígenas, caboclos e ribeirinho… Fale-nos sobre essa gente que vive na Amazônia.
Chegamos ao coração do nosso diálogo: o ser humano, a obra prima da criação de Deus. Sempre costumo dizer que nosso ambiente lembra o início do mundo e da humanidade. Apesar de termos grandes metrópoles, como Manaus, com cerca de dois milhões de habitantes e termos também milhares de imigrantes vindos de outras partes do Brasil, detenho-me nas populações que nos são mais peculiares. A Amazônia abriga centenas de povos e comunidades indígenas. Várias delas são ainda isoladas do contato com o mundo urbano. Outras já possuem alto grau da consciência dos seus direitos e têm conseguido a preservação de seu espaço e cultura. Aliás, esses são termos complicados, pois o indígena local é nômade e não entra em seus critérios mentais a possibilidade de demarcação da terra. Esta é sagrada e pertence a todos. Os caboclos são o fruto da miscigenação do imigrante branco com o índio. Grande parte da população é considerada cabocla. Ribeirinhos são todos os que vivem ao longo dos rios ou igarapés que sempre foram as estradas naturais da Amazônia. Não posso esquecer de mencionar os seringueiros que são os imigrantes ou nativos que há mais de um século se embrenharam na floresta para recolher o leite da seringueira e fabricar a borracha. É lamentável que atualmente o seringueiro não vê o produto do seu trabalho ser valorizado. É um povo simples, acolhedor, que vive em profunda relação com a natureza.

Que campos de atuação têm sido prioritários para os Irmãos nestes últimos anos?
Também aqui a educação escolar se constitui numa missão importante para nós. No entanto não somos proprietários das escolas. Trabalhamos em escolas públicas ou em escolas católicas conveniadas com o governo. Temos grande atuação também em diferentes tipos de pastoral: juventude, catequese e vocações. A pastoral social está presente nas diversas comunidades. Assessoramos Comunidades Eclesiais de Base. Algo bem típico da nossa missão inculturada é o atendimento de comunidades ribeirinhas para onde os Irmãos se deslocam algumas vezes por ano prestando diferentes forma de atendimento religioso e educacional.

Com a idéia da refundação os Irmãos se lançam a viver novos desafios. Quais são as novidades da presença marista na atualidade?
O primeiro passo é constituir comunidades fraternas inseridas e inculturadas na grande comunidade do povo. Queremos ser presença significante que prima pelo estilo de vida simples e dialogal, bem próximo ao nível da população local. Conseqüência desse desafio é a busca da auto-sustentação. Os Irmãos querem sobreviver `a custa do próprio trabalho remunerado para estar bem de acordo com a realidade social. Pensamos em desenvolver uma missão mais itinerante, isto é, inserir-se em realidades sociais necessitadas, desenvolver lideranças locais e migrar para outras frentes. Por esta razão não podemos ter estruturas muito pesadas, o que nos impediria essa movimentação. Por isso é melhor que as obras não sejam nossas. Trabalhamos, portanto, em parceria com outras Congregações, Dioceses e Instituições. Esses princípios começam a ser exercitados desde a formação inicial que acontece de modo inserido nas pequenas comunidades.

Quais dificuldades encontra em sua missão e que necessidades considera mais importantes?
Nossa urgência é a consolidação de uma nova mentalidade sobre a Vida Consagrada Marista. Ou, talvez, o real retorno as nossas raízes fundacionais adaptadas `a realidade amazônica hodierna. Os aspectos que mencionei na questão anterior já estão bem arraigados nas idéias dos Irmãos. Mas a sua prática ainda exige uma decisão maior. Ainda não temos muitos Irmãos nativos da região com uma história razoavelmente longa de Vida Marista. Adequar a formação congregacional aos nossos jovens, respeitando seus valores culturais e assimilando um estilo de vida sóbrio se constitui num grande desafio para nós. Outra necessidade é a de desenvolver uma espiritualidade ecológica, bem inserida nessa realidade e profundamente centrada em Jesus Cristo e Maria, nossa Boa Mãe. Do ponto de vista prático, uma das grandes dificuldades são as distâncias e a dificuldade de relacionamento entre as comunidades. Note-se que a área correspondente ao nosso Distrito é 3.101.405,9 km2. Se nossas comunidades maristas e eclesiais não forem bem fraternas e consistentes, torna-se difícil superar a solidão e o isolamento que a geografia nos impõe.

Como se desenvolve a pastoral vocacional e o processo de formação marista?
Quantos noviços tem atualmente o noviciado Maria de Nazaré?

Todas as dez comunidades são chamadas a fomentar e a acompanhar as vocações. Em 2002 todas elas foram capazes de acolher e acompanhar pelo menos um jovem vocacionado ou um jovem Irmão em formação. Isso para nós é uma grande conquista e os Irmãos estão abertos para isso. Temos todas as etapas da formação no âmbito das comunidades do Distrito. Temos 12 jovens Irmãos originários do Distrito, dois dos quais professaram recentemente. No ano que vem teremos 2 noviços e 7 postulantes. Nunca nos é demais reconhecer a garra apostólica, a comunicação vibrante do Projeto de São Marcelino, que dezenas de Irmãos nos trouxeram durante essas quase quatro décadas. Foram eles que lançaram as bases para a criação do nosso Distrito e continuarão a nos ajudar na sua edificação.

Como vocês vivem a presença de Deus nesse paraíso terrestre?
O homem amazônico é contemplativo por natureza. Vive em contato permanente com a natureza que lhe circunda: água, floresta, pássaros. A falta desses elementos é muito sentida por aqueles que se vêem obrigados a migrar para as grandes cidades. Outra característica bem nossa é o grande laço familiar que une os membros da mesma família por diversas gerações. Tudo isso é espaço do sagrado, é manifestação de Deus! Além do mais, nosso vocabulário é muito religioso. Temos muitas expressões típicas para agradecer a Deus ou nele esperar em tudo aquilo que acontece. Por vezes, essa ligação com o divino pode chegar ao exagero, ao fanatismo religioso. Nosso relacionamento com o sagrado se dá de forma muito espontânea, muito natural.

Depois desses 35 anos de presença marista na Amazônia, como sonha o seu futuro?
Nosso momento é lindo, é cheio de esperança! Neste tempo em que a humanidade salienta a importância da Amazônia para o mundo, nós nos sentimos parte desse tesouro. Mas, como disse Tiago de Melo, poeta e escritor amazonense: A espécie mais ameaçada na região chama-se homem. Por conseqüência, nós, irmãos e leigos maristas, somos chamados a optar pelos curumins e cunhatãs (termo indígena para designar as crianças) mais necessitados da região. Os desafios são enormes. Queremos viver de maneira simples e comprometida com essa gente. Esperamos fortalecer as vocações autóctones. Queremos também continuar acolhendo muitos Irmãos e leigos do Brasil e de outros Países do mundo que aqui quiserem ser missionários.

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