A Santidade do Irmão Henri Vergès. O destemor em forma de amor

Compartilhamos, abaixo, o Testemunho do Ir. Eduardo d’Amorim (Surubin, Pernambuco – Brasil) que conheceu e conviveu com o Ir. Henri Vergès.


Henri Vergès, companheiro de comunidade na Argélia. Meu irmão

Estava na Bélgica, no ano de 1986, quase terminando um Mestrado em Louvain la Neuve, quando recebi uma carta do então Superior Geral. Era o período de uma Reunião dos Superiores, que se realiza de 3 em 3 anos, criada no Governo Geral de meu irmão Basílio Rueda. Na realidade, fiquei surpreso com o conteúdo da carta, uma vez que o Superior Geral me fazia elogios sobre meu interesse pelos árabes do Norte da África, meus irmãos muçulmanos. Verdade, eu já estivera no Norte da África quando nos anos 60, e depois nos anos 70 , estivera visitando e escrevendo sobre os arabizantes africanos brancos. Talvez ele tinha lido algum dos meus artigos.

Também havia escrito sobre o deserto do Sahara, quando ali estivera durante 45 dias, em companhia de meu irmão Baba Old Abdé, na sua casa, ou seja em sua tribo Kounta no ano de 65. E escrevera sobre essa experiência. No final da carta, me fazia o convite para passar três anos na Argélia, numa comunidade de inserção e presença e que era a casa de acolhimento do Irmão francês Henri Vergès. Confesso que ficara imensamente satisfeito pelo convite e já vislumbrava o que poderia fazer na Argélia. Como eu já estivera algum tempo em Nouakchot, capital da Mauritânia, tinha a ideia que os cristãos deveriam oferecer a essas populações arabizantes apenas presença humana e amiga, e a possibilidade de lazer. Essa seria a única possibilidade de fazer o bem aos milhares de jovens que, em muitos desses países, nada têm como presença e como lazer. Nada de ir para essas terras pregar o Cristo, mas ser um Cristo no meio dos muçulmanos, pelas atitudes, cuidado, carinho e presença. A carta me fora trazida pelo Irmão Ramalho, meu Provincial, que viera diretamente de Roma me visitar. Eu deveria me comunicar com o atual Provincial francês para acertar minha viagem, me comunicando também com o ir Henri. Deveria fazer um mês de experiência na comunidade, também composta de um peruano e um espanhol, se não me engano. Imediatamente, escrevi ao Provincial francês e ao irmão Henri. O Irmão Ramalho permaneceu alguns dias comigo na Bélgica, conversando, saindo à Bruxelas e, sobretudo, brincando. É maravilhoso para mim o convívio com esse menino que se chama Ramalho. Mas, numa de nossas conversas, ele me disse :” Fui chamado pelo Superior Geral e conversamos sobre sua ida para a Argélia. Confesso que meio a contragosto abri mão de você, permitindo ao Superior Geral lhe fazer o convite que fez. Eu gostaria muito de contar com você como diretor de tal lugar.” Neste momento, o meu coração se dividiu : Argélia ou voltar para a Província ? Decidi então ir à África e decidir in loco. Assim foi feito.

Cheguei a Argel e fui recebido no Aeroporto da Capital pelo Irmão Henri. Atencioso, muito fino, muito delicado, falando um francês já meio argelino, me recebeu de braços abertos. Em um carro, muito simples, fomos visitar uma comunidade de irmãs Maristas que trabalhavam também em uma inserção. Com ele, depois de alguns dia, fomos visitar o Arcebispo de Argel, que era um Cardeal. Numa das conversas com o Cardeal, fiquei a par das dificuldades da Igreja Católica em terras argelinas. Havia, por exemplo, um jovem já maduro, argelino, que queria ser batizado e ser padre católico. E tudo era feito às escondidas. Na realidade, na Missa dominical ou em qualquer MIssa na Argélia , só iam os estrangeiros, normalmente comerciantes ou o pessoal das Embaixadas francofones. Mas, para surpresa de todos, a Catedral de Argel, dedicada a Nossa Senhora da África, era diariamente frequentada por argelinos, sobretudo mulheres, para orar e meditar. Como compreender isso ?

Com irmão Henri visitamos o Liceu, onde eu deveria trabalhar, como professor de francês. Esse seria o meu trabalho e o chamariz. Mas, algumas vezes, fomos a um Mosteiro onde, escondidos, fazíamos orações com um grupo de homens argelinos e muçulmanos. Era uma experiência que já de há muito era realizada, os católicos e muçulmanos adorando em comunidade o mesmo Deus. Era excitante e, ao mesmo tempo, profundamente espiritual. O Deus católico, que agora era Alá, e Alá, que era Deus para nossos irmãos muçulmanos, estavam encarnados e solidários naquela oração fraterna. Normalmente eram entoados salmos, lindos quando cantados pelos nossos irmãos, num tom de imensa nostalgia e petição. A contemplação flui, parecendo que Deus estava em carne e osso presente entre nós. Nossa saída da oração era cautelosa, escondida, parecendo que estávamos no século primeiro ou segundo, usando as catacumbas, nos livrando de inimigos perigosos e mortais. Uma aventura que enchia também a minha alma. E o Irmão Henri à frente e audacioso, mas ao mesmo tempo cauteloso, e silencioso.

A comunidade marista estava nesse período só com Henri e Irmão Jesus, este relativamente jovem e trabalhador. Devia ter seus 35 anos. Henri com 56 e eu com meus 49 anos. Nas vezes que fomos orar no Mosteiro o Irmão Jesus não nos acompanhou.

Henri era muito simples, tendo um certo traço francês que era o de taquinar, brincar, dizendo meias palavras para brincar comigo. Um dia me disse, sério : “Menino, você é muito grande para ficar escondido na Argélia. Deveria ser professor universitário”. Ele havia recebido meu curriculum vitae enviado pelo seu Provincial.

Hoje eu medito na calada da noite, antes de dormir e orar, que conheci e, com alguns, convivi, com pessoas que exalavam santidade. Nesta lista coloco meu inesquecível Basílio Rueda, meu amigo Dom Helder Câmara, um ícone para mim que é o Roger de Taizé, duas mulheres que me impressionaram pela delicadeza e santidade explícita que foram Irmã Dulce e Menininha do Gantois, ambas baianas. Neste lista ainda os meus Mestres de noviços Bernardo e Damião, cada um a seu jeito, mas santos de altar. E o Irmão Henri ? Tímido, trabalhando na surdina, humano a não poder mais, mas corajoso, tendo consciência que sua ação naquelas terras, que ele adotara como sua, mantinha sua vida sempre por um fio, diante das atitudes desbravadoras que tomava num campo que ele sabia minado. Quando alí estive, o seu trabalho na biblioteca, espaço acadêmico e de lazer para os jovens, ainda não era uma realidade. Hoje vejo que sua santidade se expressava de forma diferente do meu conceito sobre o tema. Realmente, não é brincadeira viver nesta tensão e amor durante mais de 25 anos de presença marista e cristã, entre irmãos iguais e muito diferentes.E que, em seus quadros superiores, não aceitavam o diferente em nível religioso.

Decidi então, depois de mais de um mês, voltar ao Brasil Norte, não por medo do perigo, sinceramente, mas por apego ao meu Universo de Nação Nordestina. Não me arrependo. Mas, é bem possível, que Deus, nos seus desígnios, escolhera Henri Vergès para ser mártir, e eu para ainda estar vivo e admirando meu irmão.

Irmão Eduardo D’Amorim, fms