17 de novembro de 2010 CASA GERAL

A Escrava do Senhor

Depois de ter delimitado o alcance do ?principio mariano?, Von Balthasar aprofunda três características do mesmo, através de uma análise em que ressalta sua profundidade, largura e extensão. Essas três dimensões, engenhadas com rara intuição intelectual, poderiam constituir três ícones, expostos à contemplação dos olhos e do coração do crente.

O primeiro pode ser denominado de ícone do mistério. Nessa descrição, Von Balthasar delimita com grandes pinceladas a realidade profunda e generosa do mistério da Igreja, como ?multidão reunida em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo?. A Igreja é integrada por todos aqueles que foram eleitos ?em Cristo, antes da criação do mundo?. Cristo amou a Igreja no mistério de Deus uno e trino, em Deus que é amor. Os fundamentos desse mistério de amor podem ser encontrados na carta aos Efésios. Von Balthasar convida-nos a ver a Igreja como a manifestação do ?grande mistério? do amor trinitário aos homens. Por isso, define essa relação como um ?milagre de amor?.

Ao destacar a dimensão misteriosa da Igreja em suas origens, para manifestar o papel de Maria como protótipo da Igreja, Von Balthasar considera que se deve deixar de lado os cálculos cronológicos relativos ao momento preciso da fundação da Igreja. Os vários momentos (Anunciação, Cruz, Pentecostes…) ?são mais bem o tornar-se presente ?histórico? de uma realidade supratemporal e eterna, dentro da história?1. As origens mais profundas da Igreja é preciso buscá-las através de todo o grande arco da criação e da história da salvação até Deus, verdadeira fonte do amor.

A célula fundamental da Igreja é a união de Cristo e de Maria. A união física, no ventre de Maria, e a união mística, no coração da Igreja, é aquela que fundamenta todas as demais uniões entre os homens e Deus. O ?sim? de Maria abraça todos os demais ?sim? dados a Deus. Maria participa no mistério da ?multidão dos reunidos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo? como ?escrava? do Senhor, como ?mulher? e como ?discípula?.

Manifestação do começo da Igreja na casa de Nazaré

A disposição fundamental da Igreja é um eco da escrava do Senhor (Ancilla Domini)2 que permite que o dom de amor da vida trinitária a plasme. Urs Von Balthasar reconhece os começos da Igreja na encarnação do Filho de Deus. ?O anúncio do anjo foi dirigido a Maria; Ela o acolheu e, quando respondeu do mais profundo do coração: ?Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra? (Lc 1,38), nesse momento o Verbo eterno começou a existir como ser humano no tempo? 3. Essa união do Filho de Deus com a mulher Maria foi a primeira célula da Igreja.

 O ?sim? de Maria na Encarnação oferece o ponto de partida da fé neotestamentária eclesial. Esse ?sim? é o encontro entre a ?totalidade? de Deus e nossa disponibilidade. Nesse momento, o encontro da totalidade de Deus e da disponibilidade total do homem dá origem a uma plenitude de comunhão. E, da primeira para a segunda, desce o Espírito Santo, o portador da semente divina – a Palavra – para plantá-la no seio de uma mulher?. 4 Von Balthasar considera a união, nascida na Anunciação, entre a Virgem Mãe e o menino, como a ?primeira célula? da Igreja, fruto do Espírito Santo, Espírito que ?estará sempre presente nas orações, nos sacramentos e nos carismas da Igreja?.5

O ?sim? de Maria à Palavra, que fecunda seu seio, não é uma resposta simplesmente individual: nele está contida uma dimensão coletiva de abertura a Deus. ?O ?nós? comunitário da Igreja, formada pelo ?nós? da Trindade, já encontra  expressão no ?sim? de Maria a Deus, por conta de todo o gênero humano?.6 ?Toda a fé de seu povo se expressa definitivamente ali?.7 Com outras palavras, o ?sim? de Maria é produzido pelo Espírito Santo com uma universalidade que recapitula e encarna todo momento de disponibilidade em relação com Deus:

?Até o menor indício futuro de entrega e disponibilidade de qualquer indivíduo humano estava incluído no ?sim? de Maria: segundo Tomás de Aquino, Maria responde por toda a raça humana. Por isso, esse ?sim? se lança também para frente, para incluir todos os ?sim? intentados dentro da Igreja verdadeira. Em Maria, a Igreja já foi aperfeiçoada porque o Espírito Santo ? no qual Ela pronuncia seu ?sim – é para sempre o ?nós? de Deus e começou sua obra na terra: edificar o ?nós? pronunciado e vivido por cada um, diariamente?.8

?O ícone da anunciação, melhor do que qualquer outro, permite-nos perceber com clareza, como, em toda a Igreja, se retorna a esse mistério da acolhida do Verbo divino, onde, por obra do Espírito Santo, se ratificou perfeitamente a aliança entre Deus e a humanidade. Tudo na Igreja, toda instituição e todo ministério, inclusive o de Pedro e seus sucessores, está ?colocado? sob o manto da Virgem, no espaço cheio de graça de seu ?sim? à  vontade de Deus?.9

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A.M. Estaún
Este escrito forma unidade com os artigos publicados nos dias 20, 31 de maio e 20 de junho de 2010.


1Il Tutto nel frammento, 136.

2 ?A expressão ?escrava do Senhor? é muito problemática para a teologia feminista. A relação dono-escravo é absolutamente detestável numa sociedade humana. Séculos de interpretação patriarcal etiquetaram a resposta de Maria como obediência submissa e apresentaram essa atitude como o ideal adequado da mulher na relação com o homem: uma visão que está em contradição com as esperanças da mulher, em sua própria dignidade. As exigências tradicionais de conformidade com a ordem patriarcal e de obediência às autoridades religiosas masculinas – sejam essas Deus, esposo ou sacerdote – fazem com que as mulheres estremeçam ante esse texto e o recusem como nocivo para a saúde física e psicológica, assim como para um espiritualidade libertadora. Não obstante, os exegetas avaliam muito positivamente o fato de que Maria apareça em sua relação com Deus como independente do controle dos varões, uma atitude que, por si mesma, mina a ideologia patriarcal. As mulheres advertem que, nessa cena, Deus fala diretamente a Maria, sem que a mensagem passe pela mediação de seu pai, seu esposo ou um sacerdote. Ademais, ela não recorre a nenhuma autoridade masculina para assessorar-se ou pedir permissão do que deve fazer. O consentimento de Maria é um ato livre de autoentrega com o propósito de cooperar na criação de um mundo novo. Ao tocarem a raiz de nossa humanidade, essas mensagens revelam possibilidades ocultas, nos limites de nossa existência; é uma dessas grandes decisões, autoconstituintes, que dão forma à vida humana. A anunciação é um acontecimento de fé. Dramaticamente, a resposta livre e autônoma dessa pobre e nada convencional aldeã inaugura um novo capítulo da história de Deus com o mundo. ?É a fé de Maria que torna possível a entrada de Deus na história?, escreve Ruether?. Elizabet A. Johnson Verdadera hermana nuestra, Herder, Barcelona 2005, p. 296

3 Homilia de Bento XVI na concelebração eucarística com os novos cardeais, 25 de março de 2006.

4 Católico, 73.

5 ?Concepito di Spirito Santo, nato da Maria Vergine?, em H. U. VON BALLTHASAR – ?Maria, icona della Chiesa?, San Paolo, Milan 1998,53-65, especialmente 61.

6 Sponsa Verbi, 201; Teodramática, IV, 328-336.

7 Católico, 73-74. [NdT: a tradução foi retocada].

8 Ibid. [NdT: tradução retocada].

9 Homilia de Bento XVI na concelebração eucarística com os novos cardeais, 25 de março de 2006.

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