23 de outubro de 2023 SíRIA

KHALAS! Carta de Aleppo N. 47 – 22 de outubro de 2023

Caros amigos,

Vocês receberão esta carta num momento absolutamente crítico para a região do Oriente Médio. Durante duas semanas, assistimos a uma incrível onda de violência, uma violência que corre o risco de se espalhar.

Muitos amigos do exterior nos perguntam: “qual o impacto desta guerra na vida cotidiana de vocês em Aleppo?”

O que responder? Mais uma vez, hoje de madrugada, os aeroportos de Aleppo e Damasco foram bombardeados pela enésima vez.

Khalas, basta! Basta de ser constantemente atacado, ameaçado, com medo.

Até quando tudo isso vai durar?

Nesta semana, e a convite do Patriarca Latino, vivemos um dia de jejum e oração pela paz.

Nós, Maristas Azuis, participamos deste dia animando momentos de reflexão e oração.

Durante um desses encontros de partilha sobre a situação em que vivemos neste momento e as repercussões dos acontecimentos de Gaza nas nossas vidas, uma professora disse: “Eu me pergunto seriamente por que ter filhos, se é para fazê-los vivenciar o que vivemos hoje?”

Vários outros expressaram seu cansaço. Khalas!

Khalas é uma expressão para dizer chega, Basta! estamos fartos, não queremos mais ouvir essas notícias, não queremos mais assistir às cenas de violência, de sangue, de morte, de explosões, de destruição! Não podemos mais!

Poucos meios de comunicação relatam a realidade de forma verdadeira e objetiva!

Outra professora dá uma resposta que revela o estado de espírito: “Quero que haja uma guerra mundial e que se acabe com isso. E que eu morra se for preciso!”

Sobre o impacto do que vivemos, sobre uma possível decisão de emigrar, todos responderam unanimemente com um massivo sim. “Queremos sair de toda a região!”

Este quadro é uma amostra do sentimento de toda uma população que viveu a guerra, a Covid 19, as sanções econômicas, o terremoto e, nos últimos dias, esta escalada de violência. Atualmente, estamos numa situação de espera e de observação atenta do que se passa na região e no país.

Se nos concentramos em falar da situação regional, é porque não é apenas regional; ela aborda valores universais e os direitos humanos mais básicos. O mundo continua a ter dois pesos e duas medidas. A vítima é transformada num carrasco que deve ser destruído, feito desaparecer da terra, queimado no inferno das bombas, deslocado massivamente…

Como semear a Esperança numa sociedade fragilizada, numa sociedade que continua a se empobrecer, numa sociedade que luta para sobreviver, numa sociedade que já não tem forças para se levantar?

Em meu diário de bordo, escrevi em 15 de setembro passado:

“São 6h da manhã…

Não sei por que ontem à noite não consegui dormir bem. Muitas imagens passam pela minha cabeça. Elas refletem as pessoas e situações que encontrei desde que retomamos as atividades no dia 4 de setembro.

O meu pensamento vai para os idosos que, ainda ontem à noite, sofreram os efeitos da onda de calor sem qualquer meio de refrescar… Não há eletricidade. Apenas 2 horas por dia… As sanções existem… SOMOS PUNIDOS… Como se não bastasse o clima, as sanções pesam no nosso quotidiano… Somos obrigados a suportar a desvalorização galopante dos nossos moeda local… Tudo está ficando mais caro de um dia para o outro….

Penso em todos os pais cujos filhos estão iniciando um novo ano letivo. Os materiais e a escolaridade são tão caros que podem representar, para um único filho, mais da metade do salário anual dos pais.

O meu pensamento se dirige também aos jovens. Sim, todos esses jovens que só têm uma ideia na cabeça: sair do país para ir para qualquer lugar, de qualquer jeito, mas o mais rápido possível. Esperança e preocupação são dois sentimentos dominantes… Por um lado, estudar para ter sucesso e obter um diploma e, por outro, o que fazer a seguir? Procurar sair do país ou cumprir o serviço militar obrigatório. Muitos jovens se dizem “perdidos”. Eles necessitam de apoio psicológico com vista a um discernimento definitivo… O que fazer? Que conselhos dar? Onde encontrar os recursos econômicos necessários para emigrar ou lançar o seu próprio projeto… Juventude em crise, perdido, em busca de um futuro longe da guerra e da pobreza… Não é nada fácil, já é muito difícil conseguir o passaporte, o que dizer então do visto?

Nos últimos dias, os meios de comunicação social nos mostraram imagens do aumento migratório em Lampedusa. Numa noite, mais de 7.000 pessoas chegaram às costas desta ilha! Estamos conscientes desta tragédia humanitária? A mídia apresenta, como símbolo do rosto humanitário, a imagem de um fuzileiro tentando tranquilizar uma menina.

Como podemos dizer aos “ grandes” deste mundo que vivemos em outro planeta? O planeta das sanções! É desumano, imperdoável, revoltante! Não aceitamos que o mundo seja indiferente. Recusamo-nos a ser tratados como pessoas miseráveis. Queremos recuperar a nossa dignidade como homens e mulheres que vivem neste século XXI. Queremos ser reintroduzidos na comunidade internacional”.

Os Maristes Azuis

Nós, os Maristas Azuis, não desistimos. Procuramos por todos os meios apoiar os mais necessitados.

Neste ano, acolhemos mais de 40 novas crianças no nosso projeto educativo “Quero Aprender”. As 120 crianças do projeco provêm de ambientes desfavorecidos e da pobreza que chega à miséria.

Professores e educadores foram beneficiados por diversas ações de formação pedagógica durante o mês de setembro. Desde 2 de outubro, as vozes das crianças, os seus sorrisos, a sua alegria enchem as salas de aula e o pátio.

O Seeds, nosso projeto de apoio psicológico, cresceu, acolhendo mais crianças no programa “Bamboo” e mais mulheres no programa “Ghosn = Branche”, um programa destinado exclusivamente ao apoio psicológico às mulheres.

O projeto “Pão Partilhado” proporciona a mais de 250 idosos uma refeição quente diária. O número de beneficiários com mais de 80 anos continua a crescer.

Como a eletricidade só é fornecida duas a três horas por dia, instalamos baterias e lâmpadas LEDs e um conversor para todos estes idosos para que não fiquem no escuro após o pôr do sol e para que a televisão possa quebrar a sua solidão.

Para idosos acamados e com muita fraqueza, distribuímos fraldas em quantidade suficiente.

Recentemente, organizamos um passeio para todos os beneficiários do “Pão Partilhado” que puderam sair do seu lugar. Foi um dia inesquecível, repleto de canções tradicionais, de danças e de lembranças. Os voluntários da cozinha prepararam uma refeição tradicional (Hrissé). Antes de retornar, alguém disse: “Hoje pude comer com muita alegria porque não estava sozinho na refeição”.

Na nossa última carta falámos do “Zelzal” com a sua quota de destruição e de medo, mas o outro lado do terramoto foi a grande generosidade de amigos e de organizações internacionais. A sua ajuda nos permitiu continuar a distribuir mensalmente a 1.100 famílias uma Cesta Alimentar muito rica em gêneros alimentícios.

Após o terremoto, iniciamos um novo projeto de ajuda para a compra e distribuição de móveis e eletrodomésticos às famílias que perderam os seus no terremoto.

Ao receber a Cesta, uma senhora chorou: explicou-nos que há vários dias não tinha uma gota de azeite em casa. É bom notar que o preço do azeite (essencial para os orientais) aumentou tanto que já não é acessível para muitas famílias.

Com o passar dos dias, constatamos a extrema pobreza em que se encontram tantas e tantas famílias. Até quando poderemos satisfazer as necessidades de uma população da qual 82% vive abaixo do limiar da pobreza?

Com o final dos módulos 1 e 2 do projeto “Formação Profissional”, preparamo-nos para lançar 2 novos módulos de uma só vez. Em cada módulo, 20 jovens aprendizes aprenderão um ofício durante 2 anos trabalhando para um profissional.

Por outro lado, continuamos, por meio do Micro-Projetos, a ajudar os jovens a lançar o seu próprio projeto. Tal como acontece com a formação profissional, eles são acompanhados e apoiados.

As sessões de formação do MIT são muito apreciadas. Para uma sessão de 24 participantes, temos uma lista de mais de 130 candidatos.

O programa “Desenvolvimento da Mulher” oferece a 60 mulheres, organizadas em dois grupos, duas sessões de formação por semana. Também aqui, como em todos os nossos projetos, a lista de espera é muito grande.

“Corte e Costura” celebrou um “Open Day” para todas as mulheres que participaram de suas sessões desde o início do projeto em 2017. Mais de uma centena de senhoras responderam ao convite e passaram meio dia juntas com concursos e momentos de partilha.

O projeto de Assistência Médica é muito estimado e valorizado nestes tempos difíceis. Todos os dias, dezenas de pessoas recebem apoio para tratamento, cirurgia ou medicação. Esta assistência torna-se cada vez mais necessária face ao aumento indescritível dos cuidados médicos e dos preços dos medicamentos.

Conseguimos distribuir fraldas para crianças. Muitos pais nos pedem para ajudá-los com os seus filhos mais velhos que, depois do terramoto, retomaram a incontinência noturna.

“Gota de Leite” continua a ser um projeto muito importante para crianças menores de 8 anos. Para os recém-nascidos, a necessidade mensal de 6 a 8 latas de leite infantil especial custa mais do que o salário mensal dos pais.

A Heartmade continua e desenvolve a sua atividade e multiplica os produtos para alcançar o autofinanciamento. Vinte mulheres encontram trabalho lá, criando roupas femininas com sobras de tecido.

“Hope” segue atraindo muitas pessoas que procuram aprender inglês. Todos os beneficiários demonstram grande interesse em estudar inglês e seguir os 3 níveis oferecidos pelo projeto para aprimorar seu currículo.

O projeto “Alugar” continua a apoiar famílias que têm grandes dificuldades em pagar o aluguel, dada a subida vertiginosa dos preços.

O projeto “Apoio Escolar” ajuda os pais de crianças e jovens a pagar a escolaridade ou sessões em centros especializados. Uma criança de doze anos, acompanhada pela mãe, veio pedir ajuda para retomar os estudos, explicando que um dia teve que abandonar a escola para ir trabalhar e ajudar a família, cujo pai estava gravemente doente. Acreditamos que, como ele, tantos outros merecem um futuro melhor.

Papa Francisco

Para concluir, reflitamos juntos sobre as palavras do Santo Padre durante a sua viagem a Marselha, no dia 23 de setembro deste ano:

“… Com efeito, o verdadeiro mal social não é tanto o aumento dos problemas, mas a diminuição dos cuidados. Quem hoje está próximo dos jovens abandonados à própria sorte, vítimas fáceis da delinquência e da prostituição? Quem está próximo das pessoas escravizadas pelo trabalho que deveria torná-las mais livres? Quem cuida das famílias assustadas, que têm medo do futuro e de trazer novas criaturas ao mundo? Quem escuta os gemidos dos idosos isolados que, em vez de serem valorizados, são conduzidos à perspectiva falsamente digna de uma morte doce, na realidade mais salgada que as águas do mar? Quem pensa nos nascituros, rejeitados em nome de um falso direito ao progresso, que é, pelo contrário, um retrocesso do indivíduo? Quem olha com compaixão para além das suas fronteiras para ouvir os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente? Quantas pessoas vivem imersas na violência e sofrem situações de injustiça e perseguição! ”

Caros amigos,

Com vocês, homens e mulheres de boa vontade, nós não queremos nos render e desistir.

Vocês são nossa voz!
Vocês são nosso grito!
Vocês são nossa esperança! 

Nós contamos com vocês para que juntos mudemos o mundo a fim de que ele seja mais justo, mais digno, mais humano.

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Domingo, 22 de outubro de 2023.
Irmão Georges Sabe

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