Carta a Marcelino

Ir. Barthelemy

1840-03-16

Sobre o Ir. Barthélemy fizemos breve comentário em carta anterior (ver a Carta nº 134). Dos textos que se conservaram, esta é a única carta do Ir. Barthélemy endereçada ao Fundador; em sentido contrário, há 3 cartas do Fundador dirigidas a ele (Lettres, doc. 14, 19 e 24). O Ir. Barthélemy revela a sua grande estima pelo Fundador ao descrever, já no primeiro parágrafo do texto, a dor e a preocupação que sente, sabendo que está muito adoentado. Depois, todo o restante da carta é a descrição da situação difícil da pequena escola de S. Symphorien, onde os Irmãos atuavam desde 1827, com pouco apoio do pároco e muita hostilidade por parte de alguns representantes do povo. O Ir. Barthélemy enumera nove motivos pelos quais julga que seria conveniente a retirada dos Irmãos de S. Symphorien, mas deixa o Pe. Champagnat inteiramente livre para decidir. A presença dos Irmãos na localidade continuou por longos anos, até 1904.

Saint-Symphorien-dOzon,
16 de março de 1840.

Reverendíssimo pai e superior, a vossa bênção.

Pelo fim de fevereiro, recebi notícias sobre a vossa saúde, mas tão aflitivas que fiquei desolado, até que, pouco depois, soube algo mais consolador sobre esse assunto. Tende a fineza de confirmar essas notícias e dar-me outras ainda melhores, se possível; o prazer que me dareis estará acima de toda a expressão.

Valho-me do ensejo, neste pedido de notícias vossas, para falar-vos do nosso pobre estabelecimento de St. Symphorien-dOzon. Rogo-vos que, com referência àquilo que vou dizer-vos, não tenhais nenhuma consideração do meu próprio sentimento e da minha maneira de ver, porque, se o assunto com que vos entretenho, por um instante, vos levasse a tomar definitivamente uma decisão que já estivestes a ponto de tomar, não pretendo influir em nada perante Deus. Fazei o que crerdes seja melhor e o mais conforme à vontade de Deus e o mais vantajoso para a Sociedade de Maria.

Eis o sumário sucinto das razões sobre as quais se funda a minha opinião e maneira de pensar, algo que me creio obrigado a comunicar-vos nesta ocasião.

1° Nunca este estabelecimento irá bem, enquanto for regido e sustentado como é hoje. É a opinião de todos os Irmãos e de outros que o conheceram tão de perto como eu; o que segue provará, talvez, a asserção que adianto; mas, se duvidais, enviai o caro Irmão Louis-Marie, que estará em condições de ver por si o estado das coisas e fazer-vos delas, em seguida, relato fiel; depois sabereis melhor como julgar. Quereria que viesse quanto antes.

2° A atitude que manifesta o pároco para com esta escola patenteia ou demonstra certa incúria que desola; sei muito bem que, no fundo do coração, ele liga muito, mas isto não se traduz em atos. Pelo menos, o que vejo mo faz presumir. No ano passado visitou uma só vez a escola. Este ano, ainda não apareceu, afora no dia da visita do Inspetor, o que acontece uma vez por ano. Dessa visita não lhe conheço nenhuma intenção, porque pode dispensar-se dela. Creio que se eu não pusesse os pés na casa canônica, o pároco não saberia nunca nada do que se passa nas aulas. Quando vou vê-lo, para pedir-lhe a sua opinião acerca de tal aluno ou de toda a escola, dir-me-á certamente o que cumpre fazer ou me deixará livre, mas é de maneira tão fria, na aparência, que estou tentado a não lhe pedir seja o que for.

3° Se nos retirais daqui, alegrareis sobretudo dois membros da comissão local de vigilância e um terceiro, o senhor prefeito, que ficará consolado. Os três quereriam, se pudessem, ter a escola comunal com o professor leigo; não o dizem publicamente, mas o soube de fonte segura. Prestam-me o melhor acolhimento possível, o que lhes retribuo também da melhor forma que está em mim; mas desconfio muito deles, porquanto conheço bem demais o seu fingimento.

4° Além disso, a maioria dos paroquianos, que têm meninos nas escolas, também não chorariam, se nós saíssemos. A nossa partida lhes dará tanto prazer, creio, quanto a nossa chegada lhes deu no primeiro ano.

5° Temos ao todo 56 alunos; 39 na minha aula e 17 na outra. Nesse número há vários que só vêm uma vez por dia, outros que se ausentam muitas vezes por causa dos trabalhos nesta época do ano; de sorte que o número de alunos na aula dos pequenos varia de 12 a 17, e o da minha aula de 24 a 34; raramente há mais, simultaneamente, afora no mau tempo. Desde o dia de Todos os Santos, só recebemos dois novos alunos e perdemos doze ou quinze daqueles que vinham no ano passado. Se não nos enviardes o Irmão Ambroise, o mais tardar até o fim da quaresma, não se devem esperar outros novos ou, pelo menos, muito poucos.

6° Não me queixo do caro Irmão Adrien; fez e continua fazendo sempre tudo o que pode; mas a sua falta de instrução, o pouco tirocínio e a grande dificuldade em falar fazem com que não possa lograr êxito em lugar tão difícil como aqui. Com esse Irmão, eu, pessoalmente, até ganhei, mas na função docente deixa muito a desejar. Fiquei surpreso de que me tenham dado auxiliar tão pouco capaz para o ensino. Ainda bem que o endireitei um pouco e lhe ensinei a fazer ler o mapa, a servir-se do sinal etc.; senão os seus alunos não teriam aproveitado mais do que em St. Sauveur, no ano passado. Não o vi prestar exames, nas últimas férias; se tivesse sido testemunha do seu pouco saber e da sua dificuldade em exprimir-se, teria sido necessário que me rogassem para que o trouxesse comigo. No mais, estou contente com ele; é bom moço, será muito útil para desimcumbir-se de trabalho manual ou dirigir a cozinha ou mesmo dar aula em lugar menos difícil do que aqui, com tal que seja melhorado um pouco para isso; tem desejo ardente de instruir-se, porque vê que sabe apenas o absolutamente necessário à sua pessoa. No entanto, malgrado tudo o que acabo de vos dizer no concernente ao meu muito caro colaborador, preferiria guardá-lo a ter outro que nunca tenha estado aqui e que não seria, talvez, mais capaz do que ele. Prevejo que, se não puderdes enviar-nos o Irmão Ambroise quanto antes, seremos obrigados a esconder-nos de vergonha, porque, quando vier a primavera, quase não teremos alunos.

7° As razões que tive de pedir-vos a remoção do Irmão de que falei ficam um pouco prejudicadas agora, porque melhorou, pelo que ouço dizer e, ademais, havendo emitido os votos perpétuos há pouco, tenho motivo de crer que se tornará mais razoável doravante. Além disso, solicitando o outro Irmão, não procuro o meu proveito pessoal, asseguro-vos, até porque sei de sobejo as misérias que tive no ano passado com ele; só espero tê-las um pouco menores desta vez, se no-lo enviais; terei sempre mais problemas com ele do que com o Irmão Adrien. Assim, crede que nisto não busco senão a vantagem da aula dos pequenos e, por ela, de todo o estabelecimento.

8° Se não enviais alguém capaz de fazer uma visita em regra, para examinar in loco o que acabo de vos dizer, seria bom que escrevêsseis ao senhor pároco para lhe pedir o que é devido, fazendo valer as vossas necessidades e fazendo-lhe entender que os Irmãos não fazem o bem na sua paróquia com tão poucos alunos e com partido tão forte contra eles; que estais muito preocupado com outros estabelecimentos, onde os Irmãos farão o bem muito mais do que aqui; numa palavra, se não encontra meio de fazer caminhar a sua escola com passo mais firme, sereis obrigado a retirar os Irmãos quanto antes. Estou certo de que uma carta desse gênero o despertará do torpor profundo em que a incúria parece havê-lo lançado.

9° Termino com essa observação: uma vez que os víveres são muito caros e não temos horta, apenas pátio, os nossos 800 francos poderão com dificuldade fazer face à despesa da alimentação, da roupa e da manutenção da mobília que, aliás, pouco vale.

Vede, agora, as razões que tendes para retirar-nos ou para nos deixar sofrer ainda. Cumpri o meu dever informando-vos de quanto devia dizer-vos. Fazei o que julgardes conveniente, sem dar nenhuma atenção ao meu sentimento e à minha opinião, como vos roguei no começo desta. Se tivésseis a bondade de devolver a presente com alguma palavra vossa para cada artigo, dar-me-íeis muito contentamento; contudo fazei o que desejardes.

No aguardo do prazer de ver-vos ou, pelo menos, de receber as vossas novas, abraço-vos; sou, com muito profundo respeito, meu reverendíssimo pai, o vosso muito humilde e muito obediente servidor e filho em Jesus Cristo, Irmão BARTHÉLEMY.

P.S. Pedistes-me que perguntasse ao senhor pároco se ele havia recebido a vossa carta; creio que não a recebeu.

Edição: S. Marcelino Champagnat: Cartas recebidas. Ivo Strobino e Virgílio Balestro (org.) Ed. Champagnat, 2002

fonte: AFM 121.12

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